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MANTA DE RETALHOS

No primeiro dia do mês de agosto, a família reunia-se toda à beira da arramada e a matriarca da casa aparecia da porta mais baixa, fechada a trinco e a cadeado. Vestida de lenço negro na cabeça, avental cinzento e a cara enrugada pelos anos, trazia nas mãos uma manta de retalhos. Uma manta tão bem feita, produzida durante os meses frios do inverno, aquecida no calor dos primeiros dias de julho e arrefecida e lavada pelo vento no fim de setembro, princípios de outubro.

A CONVERSA

Hoje não me apetece falar contigo. Acho que aquilo que era para ser dito já foi tantas vezes que não vale a pena nos repetirmos em parágrafos longos e cansativos como fizemos tantas vezes. E para quê? Para acabarmos sem nos falar durante semanas como sempre aconteceu? Hoje não me apetece que fales comigo. Imagina que sou um manequim estático e mudo, sem vida. Imagina que sirvo apenas para enfeitar uma montra de uma loja numa rua qualquer de Portugal, onde pouca gente passa e onde está um cartão escrito a marcador e colado a fita-cola que diz: Saldos de 15 de agosto a 14 de setembro.

O MEU CÃO

O meu primeiro cão chamava-se Piriquito e a memória mais remota que tenho dele remonta à altura em que eu teria 3 ou 4 anos. A presença de um animal de estimação para uma criança, especialmente um cão, sempre marca e torna a vida muito mais interessante. Recordo-me bem da nossa amizade profunda, da nossa cumplicidade. Era um cão baixo. Nenhuma raça em especial, mas muita personalidade. Guardo ainda fotos dele que nos tiraram. A nossa amizade manteve-se enquanto foi possível pois, aquando do meu nascimento, o Piriquito já era velho e a duração das nossas vidas é diferente. Jamais esqueci os momentos até hoje. Os seus olhares de aprovação, de inclinar ligeiramente a cabeça quando me queria dizer alguma coisa ou pedir comida, essencialmente por telepatia pois não nos seria fácil utilizar o mesmo código de linguagem. Era o meu cão, o meu melhor amigo. Às vezes fazíamos corridas monte acima, no meio do Caldeirão, em que, obviamente, ele ganhava sempre. Correr com quatro patas é, aparentemente, mais vantajoso do que com duas. Acho que as galinhas têm a mesma opinião que eu.

CAFÉ

Cheguei à entrada do café passavam alguns minutos das sete horas da manhã. Óculos escuros postos para disfarçar o olhar matinal de quem vê o Sol como se o visse pela primeira vez na vida. Os olhos emocionam-se, reagem de forma alérgica e ficam vermelhos e inchados. É o repetir dos dias e o peso do sono. Nada a fazer, exceto um café matinal para agitar a adrenalina que se acomodou durante a noite. Após passar a portada do café, esperavam-me tantas caras desconhecidas quanto espaços vazios na cafetaria. Encostei-me ao balcão e o empregado, do outro lado, lançou-me um olhar de rapidez inquiridora do que me levava ali e perguntou se queria café. Respondi que sim e um pastel de nata. Veloz como a necessidade urgente de retirar as borras, por mais pó e tirar mais cafés numa máquina industrial a precisar de se alimentar de mais e mais cafeína. Ouvia o barulho do moinho a transformar os grãos em pó. Eu tomaria apenas uma pequena dose desse volume incomensurável de café que se misturava na água, se cobria de creme e tinha o poder de despertar até os mais sonolentos.

O VENTO

Nestes dias de julho, cá deste lado, em Timor-Leste, o vento sopra com força. Por causa disto, fiquei a saber que em Timor-Leste e na Indonésia as motorizadas são conduzidas com casacos não porque esteja frio mas para evitar que este faça entrar doenças no corpo como por cá se acredita. Não me lembro que, no resto do ano, nem na época seca nem na época das chuvas, sopre da maneira persistente e meio enfurecida que hoje sopra. As montanhas que rodeiam Díli aparam um pouco a sua força, mas o sussurrar de segredos ao ouvido das árvores é contínuo. Tem sido assim, nestes dias, Talvez seja pelas tempestades ao sul ou talvez seja porque ao oeste, naquele que é conhecido como o Anel de Fogo, os vulcões começaram a acordar de um sono prolongado.

LIVROS

Na casa do Ti João havia uma prateleira cheia de livros. Embora não soubesse ler nem escrever, o Ti João gostava de ter livros em sua casa. Quando os netos o visitavam, a casa enchia-se de alegria e os livros saíam da prateleira e andavam de mão em mão como as pombinhas da Cat’rina. Mais do que os seus livros, o Ti João amava os seus filhos e os seus netos. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto abaixo quando ouvia o barulho do carro deles, a virar a encosta, o qual lhe transformava os dias taciturnos e fazia com que as nuvens que cobriam o Sol se dissipassem, como o nevoeiro, nas manhãs frias.

ESCRITA DO SUDOESTE

Esta é uma história dentro da história. É a história de um povo que viveu há mais de dois mil anos e do qual não se sabe tanto quanto se gostaria de saber. Sobre um povo que a BBC quis conhecer melhor e recentemente filmou uma série em Loulé e Almodôvar. Em parte, não sabemos muito porque ainda não o conseguimos ler e só quando conseguimos ler alguém ou algo é que ficamos a saber muito mais sobre as pessoas ou sobre as coisas. Mas esta é, essencialmente, uma história de pedras, de estelas e de lápides funerárias que se escondem e têm vindo a ser encontradas no Alentejo e Algarve.

JOSÉ JOAQUIM DE SOUSA REIS

Há figuras na Serra do Caldeirão, ainda do lado de cá, no Alentejo, embora já numa fronteira em que não se diferencia bem o Alentejo do Algarve, que nos fazem recordar tempos idos. Há, na memória coletiva dos habitantes, ainda hoje, referência dessas pessoas. Todas elas já foram parte de um universo que se ficcionou mais do que se manteve fiel ao real.

À MESA DO RESTAURANTE

Cheguei ao restaurante pouco passava das nove horas da noite. Uma rapariga de aspeto baixo e magro esperava os clientes com um bloco de notas escrito e rasurado à porta. Olhou-me e perguntou para quantas pessoa era a mesa. Respondi-lhe que estava sozinho e não esperava mais ninguém. Pediu-me, num gesto de simpatia algo forçada, por se tratar do seu trabalho, que me sentasse no balcão que servia de bar e outros como eu aguardavam mesa para se sentarem. Alguns deles, em grupo, falavam de assuntos tão diferentes como a política dos seus países, a noite no bar, na semana passada o curso de surf e de mergulho… Outros sentavam-se simplesmente em casais e olhavam-se sem adiantar muitas palavras. Sentei-me no meio de dois casais e pedi um copo de vinho tinto, um cabernet sauvingnon do Chile. Comecei a observar os que já se encontravam a jantar e aqueles que esperavam ainda.

ROSTOS

As fotografias captam os rostos das pessoas e escondem-nos em livros onde todas as histórias são contadas. Conheço o mundo, os rostos deste mundo, os de todas as raças pelo olhar filtrado pelos rostos do Alentejo. Os livros, os computadores e todo o conhecimento dizem-me que o mundo é redondo e a estatística que nós somos sete mil milhões de rostos neste mundo, que caminhamos cada dia com o olhar de ontem e o de amanhã. Mas, cada um é diferente de todos os outros. Seja em que parte do mundo for, as fotografias dos rostos das pessoas são a memória do seu olhar, da idade gravada no rosto, as rugas que são regatos feitos pelas lágrimas, os cabelos são não mais do que o anoitecer de cada dia em tons grisalhos como se um nevoeiro se apoderasse do tempo e da idade. O lugar onde o rosto é fotografado faz parte de cada um de nós. O meu rosto é a fotografia do Alentejo, o Baixo, esse onde as espigas se refletem no rosto queimado do Sol.

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