18 Julho 2015      01:22

Está aqui

LIVROS

Na casa do Ti João havia uma prateleira cheia de livros. Embora não soubesse ler nem escrever, o Ti João gostava de ter livros em sua casa. Quando os netos o visitavam, a casa enchia-se de alegria e os livros saíam da prateleira e andavam de mão em mão como as pombinhas da Cat’rina. Mais do que os seus livros, o Ti João amava os seus filhos e os seus netos. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto abaixo quando ouvia o barulho do carro deles, a virar a encosta, o qual lhe transformava os dias taciturnos e fazia com que as nuvens que cobriam o Sol se dissipassem, como o nevoeiro, nas manhãs frias.

O Ti João tinha feito o serviço militar e servido na guerra da França. Presente na frente de batalha, viu em Lalys a morte levar tantos companheiros seus. Essas imagens recorda-as, dia após dia, sempre com o barulho das bombas a rebentar nas trincheiras atrás de si. Ao contrário de muitos outros, não voltou esgazeado para Portugal nem as suas feridas psicológicas foram tão grandes que não as conseguisse apagar. O Ti João na altura era jovem e, no caminho para a terra, parou em Lisboa. Regressava, finalmente, a casa, estropiado e cansado da guerra e da morte ao seu redor. De um campo em França, que hoje é verdejante e esconde o passado, fazendo renascer das cinzas da destruição uma nova camada de esperança, Ti João trouxera as imagens dos campos cinzentos, inóspitos, vazios de tudo e cheios de arame farpado, de cinza, de metais e de trincheiras com um cheiro nauseabundo a gás e enxofre.

Saído em Lisboa, João jovem e ao mesmo tempo já envelhecido pelo sofrimento, de farda envelhecida pelo tempo, sentou-se no Terreiro do Paço, após um caminhar de Santa Apolónia e, rodeado de gente, nunca se tinha sentido tão só. Sentou-se num canto e chorou. Chorou por estar perto de casa e chorou por deixar tantos e tantos companheiros atrás, nas trincheiras de um país que não era o seu. Um vulto aproximou-se de si e, num gesto sentido, estendeu-lhe a mão e disse-lhe:

 - Tenho pão e água. Vejo que tem fome e que as suas dores são as minhas.

João aceitou o pão e devorou a pequena carcaça que lhe foi oferecida. João disse:

- Obrigado meu bom homem, obrigado pelo gesto que é muito mais do que um pão. Não comi durante dois dias, mas saciei toda a fome imaginando a casa onde os meus pais me aguardam e Rosa se senta no cimo da elevação à minha espera. Rosa é a minha noiva, sabe? Não casámos porque não sabia se voltava. Mas voltei e, das cartas que me leram, sei que ela me espera sentada no baloiço e olha para o carreiro da elevação à frente do monte. Vamos casar e vamos ter filhos que se hão-de sentar no mesmo baloiço. Não sei ler para entender as cartas da Rosa, mas sei que, um dia, os meus filhos e os meus netos hão-de ler e perceber.

O homem, que tinha o pão, carregava consigo uma caixa de livros que tinha lido. Levava para os trocar por outros novos e, ouvindo a história de João, ofereceu-lhe os livros e acrescentou:

- Olha, bom homem, a tua história comoveu-me e fez-me pensar na sorte que tive em perceber as letras e poder juntá-las e fazer delas palavras e frases e compreender o mundo a partir de livros, onde se escrevem coisas belas, sem ter de passar pelo sofrimento que tu viveste e sem poder ler nos livros as coisas bonitas que o mundo tem. Sei que a minha oferta não é muito grande e sei também que nunca os conseguirás ler na totalidade, mas eles contam a história do mundo. Contam histórias de amor e relatam momentos de sofrimento e dor. Neles conhecerás o mundo que nunca irás ver e neles conhecerás pessoas que saberás só que existem porque as conheceste num livro. Leva, meu amigo, estes livros e, quando os teus filhos já souberem ler e os teus netos te visitarem na velhice, pede-lhes que te leiam uma página por dia e que te contem as histórias do mundo. Não te esqueças tu também de lhes contar a tua história para que nunca se esqueçam dela e para que não mais se repita. Porque, sabes, meu bom amigo, os homens nunca se lembram que nos livros se conta aquilo que já aconteceu e que poderá acontecer se os mesmos erros forem cometidos. Neles se gravam todas as ideias e imagens que podem ser o mundo. Tu que transportas o sofrimento, leva a minha alegria contigo e partilha-a com todos.

E assim João carregou todos os livros, à volta de vinte, que lhe contariam a história feliz do mundo que achava seria sempre triste. Rosa e João casaram e tiveram filhos. Como ele previra, ela ainda o esperava naquela elevação, sentada no mesmo baloiço e nesse mesmo sítio se sentaram os filhos e se sentam os netos. Rosa morreu ainda nova e não acompanhou João em ouvir tantas leituras quanto ambos gostariam. João ficou sozinho e só os livros o ajudavam a passar os dias. Olhava-os depois de chegar do campo, mirava-os quando se deitava e observava cuidadosamente cada um deles ao levantar para ver se estavam todos no mesmo sítio, mas nunca os leu.

A felicidade de Ti João eram os netos e a leitura de mais uma página, feita pelos últimos. Os livros eram mais velhos que ele e os dias só passavam mais rápido quando contava uma história da sua viagem até França e se acabava a leitura de mais um capítulo do livro que já lera muitas vezes.