20 Junho 2015      01:14

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ROSTOS

As fotografias captam os rostos das pessoas e escondem-nos em livros onde todas as histórias são contadas. Conheço o mundo, os rostos deste mundo, os de todas as raças pelo olhar filtrado pelos rostos do Alentejo. Os livros, os computadores e todo o conhecimento dizem-me que o mundo é redondo e a estatística que nós somos sete mil milhões de rostos neste mundo, que caminhamos cada dia com o olhar de ontem e o de amanhã. Mas, cada um é diferente de todos os outros. Seja em que parte do mundo for, as fotografias dos rostos das pessoas são a memória do seu olhar, da idade gravada no rosto, as rugas que são regatos feitos pelas lágrimas, os cabelos são não mais do que o anoitecer de cada dia em tons grisalhos como se um nevoeiro se apoderasse do tempo e da idade. O lugar onde o rosto é fotografado faz parte de cada um de nós. O meu rosto é a fotografia do Alentejo, o Baixo, esse onde as espigas se refletem no rosto queimado do Sol.

Em Almodôvar, os sobreiros escondem-se de vergonha, já despidos, depois de mais uma tirada, no quase calor intenso do verão. Passaram-se nove anos e é altura de tirar a cortiça e de deixar que cresça de novo. Os sobreiros estão despidos porque os homens, os tiradores, já vieram com os machados e os ajuntadores levaram a corcha. É agora, em junho que se mudam as cortiças e as roupas e se lavam nas ribeiras já quase secas as mantas do Inverno. É o seu renascer das árvores. Neste concelho ao Sul, cujo nome significa ‘muro redondo’, na língua árabe, cuja influência encontramos, a cada momento, em cada casa caiada de branco, em cada nora, chaminé, poial, a cada expressão facial, nos gestos lentos por causa do calor e, no horizonte, a herança, as oliveiras, sozinhas no meio da encosta.

Num banco de uma casa, encostada à parede virada para a soalheira, vazio e sem sombras de sobreiros, apenas a sombra da casa a escapulir-se ela também, sentavam-se três homens de três gerações diferentes, que não falavam entre si e fixavam o olhar em alguma coisa ao fundo do córrego, sem saberem muito bem o que olhavam. Certo era que todos olhavam na mesma direção e não bulia uma ponta de vento. Os três homens partilhavam o mesmo rosto, cada um diferente do outro e nascido em tempos que não eram os mesmos. Pai, avô e neto esperavam que o vento levante não estragasse as sementeiras de verão e deixasse que o campo de trigo estivesse doirado o suficiente para a ceifa.

No plaino seco do calor de junho, as árvores em frente à casa, pintadas de branco, em troncos decepados, não faziam sombra aos três homens. Tinham sido oliveiras que chegaram à idade em que só já o luto veste o corpo e as folhas já não têm a força que tiveram. Os homens, os que podiam porque tinham o poder e a força, cortaram-nas e deixaram-nas, caiadas e sozinhas. As oliveiras são, agora, os troncos que já foram árvores, que já deram azeitonas, que já foram azeite, azeite que já alimentou os homens que se sentam no banco e pensam nas oliveiras como pensam nos dias em que as oliveiras eram oliveiras e os homens eram mais novos. Cada um recua mais no tempo conforme a sua idade. As memórias dos três não são as mesmas. Cada um viu um mundo diferente, os seus olhos foram os olhos do tempo em que viveram, os seus rostos acostumaram-se a viver nos tempos como se acostumaram ao passar das estações do ano. No calor seco do verão, o chapéu negro, ensebado pelo agarrar do cabo da enxada tantas vezes, do homem velho, a boina encardida do suor do pai por cuidar das ovelhas dias após dias sem descanso, tantas vezes encostado ao cajado, e do filho, um boné de uma equipa americana de basquetebol que, em cima do trator ajudava a lavrar a horta e, na debulhadora ajudava a separar e a enfardar a palha que tinha sido cortada com os braços de todos e com a força de cada um na foice. Cada fotografia, estampada nos seus rostos, conta uma história diferente, todas vivem de momentos que se cruzam e se acompanham paralelamente. O neto tem o rosto do pai quando era jovem e o pai herdou o rosto do avô. Sem comentarem entre si, sabem que a ceifa ainda não estará pronta nos próximos dias. Por isso, aguardam pacientemente, no banco em frente à casa, no banco em que já se sentaram em todos os momentos comuns das suas vidas e, sem dizerem uma palavra, pensaram e resolveram os problemas.

Atrás de si, uma casa caiada de branco, comprida, de paredes grossas, em taipa, uma porta ladeada de uma videira, que faz sombra a uma janela pequena que impede o calor de entrar na casa dos homens que estão sentados no banco de jardim. No poial, ao lado do banco, duas mulheres sentadas vestidas de negro, em luto pela ausência, por mais uma partida que tanto se repete no Alentejo. Na cabeça da mulher mais velha, um lenço a cobrir os cabelos brancos, envelhecidos pelo nevoeiro dos dias mais tristes, as rugas feitas como regatos pelas lágrimas deitadas tantas vezes e a pele escurecida pelo esforço do trabalho e pelas dores da vida. O Sol queima a pele de quem trabalha o campo e transforma as fotografias em sépia. Os rostos ficam em tonalidades de ouro como o trigo que se transforma em alimento, após a ceifa, ano após ano. No pão e no azeite, o homem constrói o Alentejo e dá vida às planícies douradas que, ao vento, dançam valsas e melodias. Nos campos e nos bancos de cada casa perdida no Alentejo, o homem desenha o seu rosto. Ainda o Sol não pensou em nascer e já o bulir do metal das foices e os corpos agachados se agitam nas encostas porque, com o calor de um verão sempre quente e seco, só a sombra de uma casa caiada de branco deixa que as forças voltem e a folga recupere as energias dos homens e das mulheres do Alentejo, no tempo da ceifa.

As fotografias dos rostos dos homens e das mulheres do Alentejo e os campos sem fim doirados, cheios de trigo e pão que há-de ser, ajudam a ver o seu sentir, a ver as cores no fim da tarde, no momento em que o Sol se põe no cerro, deixando no mesmo tom as umbrias e as soalheiras, naqueles momentos em que a objetiva a capta e faz sonhar os olhos de quem as observa. Um dia, olhando as fotografias desses rostos, hei-de ouvir o sentir do cante alentejano, o cantar das perdizes e dos rouxinóis nas várzeas onde os pegos de água ainda abrigam os peixes. Hei-de ver nas pedras da calçada das vilas e aldeias do Alentejo, a cal de todas as casas, cobertas por telhas de um barro vermelho e quente como o sangue o registo de um mundo que não cabe numa só fotografia, mas que os rostos todos ajudam a perceber e será sempre preciso tirar mais uma para conseguir a perfeita como é sempre preciso plantar mais uma espiga para que as casas, os campos e principalmente os rostos nunca saiam de onde estão.