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34 COM A 7.ª

Da minha janela de casa vê-se o pátio interior de um prédio onde vive muita gente cujos rostos não me são familiares. Se algum dia os vi, não me recordo deles. Se os voltar a ver, não me recordarei da última vez em que os vi. Ter vizinhos num prédio em que o convívio se restringe a um olá como está no elevador quando é caso disso torna-nos um número de apartamento e uma caixa de correio. Somos isso.

O CANTAR DO GALO

Em Manhattan os galos não cantam nem às 4 nem às cinco da manhã. Não é por ser a cidade que nunca dorme, mas porque, parece-me, há poucos galos na cidade americana que vivam no meio daquela encruzilhada urbana. Jardins nos topos dos prédios há alguns, já os vi quando subi ao prédio mais alto da cidade. Vi, a partir do Rockefeller Center, alguns jardins no topo de edifícios mais baixos. Não vi, até hoje, nenhum galinheiro. Espero ainda ter essa surpresa. Espero ainda ouvir o som dos galos a despertar a cidade que não dorme. Embora isso seja, no fundo, um paradoxo. Sei-o.

MIGAS

Isto, se tudo correr bem, aterrei há poucas horas em Lisboa, volto a pisar o solo da capital, no Aeroporto Humberto Delgado. A longa caminhada entre a saída do avião e a recolha das bagagens faz-me pensar, passo após passo, que estou a pisar território nacional mais uma vez, durante alguns dias apenas. Recordam-me estes passos a primeira vez que saí do país. Corria o ano de 1996 e fui passar oito dias a Londres, precisamente a um intercâmbio sobre a União Europeia com jovens de todos os países. Recorda-me esta viagem os bons momentos que foram e a nova experiência que foi para mim.

UM CAMPEONATO DIFERENTE

Acabei de beber um café. Os nervos não me deixam agarrar na chávena com firmeza e tremo… o estômago parece saltar e dar voltas. Mais rapidamente do que a montanha russa, ando também eu às voltas. A chávena palpita-me na mão e tudo parece surreal. Tudo, no fundo, é surreal. Ando há um mês a ver jogos, umas vezes vestido a rigor, outras vezes nem tanto, assisto a ver só pelo prazer de ver e pela curiosidade de me sentir parte de um continente que neste momento vibra, que se une, que se afasta, que diz bem e que diz muito mal, que pragueja, que ri, que chora. As emoções, multiplicadas dentro de cada uma das pessoas que diz presente, são um turbilhão de energia que a Europa precisa, da alegria não sancionada.

ARROZ DE TAMBORIL

Era um domingo normal, como qualquer domingo que seja passado em casa e em família. No céu uma ou duas nuvens quebravam a monotonia do azul e deixavam antever um dia não muito quente, sem ventos fortes nem possibilidades de aguaceiros. Na casa número 134 da rua da Agonia, uma casa estreita em frente mas longa em comprimento para a parte de trás, onde ainda tinha um jardim amplo, onde estavam duas oliveiras, um limoeiro, um pessegueiro e duas laranjeiras. Fazia lembrar a forma como as casas holandesas se distribuem na cidade. Vi isso pela primeira vez em Malaca.

PÉS LAVADOS

Descontraído. Sentado na varanda do meu minúsculo apartamento, num tórrido dia de Verão, olhava para o mar em frente, através de um olhar escurecido pelos óculos de Sol vintage. O prédio ficava num décimo segundo andar e não era, em nada, diferente, de todos os outros que se dispunham virados para o oceano. Era um dia quente. Tão quente quanto todos os outros antes, começando a contas nos catorze dias em que estava na praia.

TI XICO

Ti Xico Tirador só saía do monte nos meses do Verão e ficava por fora a temporada quase toda. Ti Xico Tirador ganhara a alcunha por passar os meses de verão de machado na mão a tirar cortiça nas planícies do Alentejo. Filho de gente humilde, nascido num monte isolado no meio dos montes, Xiquinho depressa foi crescendo e passou a Xico Tirador e, mais tarde, já na segunda parte da vida, passou a ser o Ti Xico Tirador em sinal de respeito por todos os seus pares e pelos mais novos.

A MARCA D’ÁGUA

No leito da morte, a mulher que tinha vivido mais tempo que todos os que nasceram depois dela, sentia-se pronta a abandonar as dores do corpo físico. Não tinha já nada mais a fazer no círculo que se tornara a sua vida. Deitada na cama, tapada com as mantas que ela própria fizera e tecera ao longo dos muitos anos em que pode trabalhar, custava-lhe a respirar. Os seus olhos azuis já quase brancos até na menina, afetados pelas cataratas tinham dificuldade em ver fosse o que fosse. Viam apenas as sombras que, naquele dia, se movimentavam mais do que em todos os dias anteriores.

SURICATAS

Deve ter sido aí há uns 8 anos. Vivia na África do Sul, então. Há já algum tempo, nos meus anos mais jovens, onde a experiência não era a de hoje nem as imagens que tinha gravadas na mente chegavam ao número das que se guardam hoje. Muitas delas apaguei-as propositadamente, outras por lapso, outras, então, como mera limpeza de ficheiros temporários. A nossa mente tem, de facto, aspetos singulares e, um deles é a nossa capacidade de escolher e de nos permitirmos ser as memórias ou ocultar as mesmas.

A FOTOCOPIADORA

Tirava fotocópias. Digitalizava documentos. Tirava cópias a preto e branco e a cores. Ao lado, uma mulher operava a fotocopiadora. Tinha resmas de papel na sala, junto dessa máquina, e replicava documentos, fotografias, originais e já os duplicados. A sala onde a cena se passava não era muito grande, tinha o soalho em madeira, em pequenos tacos encerados que tinham já saído e voltados a ser colados.

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