1 Agosto 2015      11:03

Está aqui

CAFÉ

Cheguei à entrada do café passavam alguns minutos das sete horas da manhã. Óculos escuros postos para disfarçar o olhar matinal de quem vê o Sol como se o visse pela primeira vez na vida. Os olhos emocionam-se, reagem de forma alérgica e ficam vermelhos e inchados. É o repetir dos dias e o peso do sono. Nada a fazer, exceto um café matinal para agitar a adrenalina que se acomodou durante a noite. Após passar a portada do café, esperavam-me tantas caras desconhecidas quanto espaços vazios na cafetaria. Encostei-me ao balcão e o empregado, do outro lado, lançou-me um olhar de rapidez inquiridora do que me levava ali e perguntou se queria café. Respondi que sim e um pastel de nata. Veloz como a necessidade urgente de retirar as borras, por mais pó e tirar mais cafés numa máquina industrial a precisar de se alimentar de mais e mais cafeína. Ouvia o barulho do moinho a transformar os grãos em pó. Eu tomaria apenas uma pequena dose desse volume incomensurável de café que se misturava na água, se cobria de creme e tinha o poder de despertar até os mais sonolentos.

Pedido um café e um pastel de nata à boa maneira portuguesa, polvilhei o segundo com canela e, em dois pequenos pires, um em cada mão, de mochila às costas, sentei-me numa das mesas disponíveis. Não havia ninguém sentado à minha frente nem ao meu lado. A mesa era uma daquelas que imita granito, mas construída numa fibra que é bem mais leve do que o granito, ligeiramente mais pesada do que o humor matinal de todos aqueles que via ali no mesmo café que eu. Olhei pelo vidro enorme que era a janela, transparente e ainda marcado pela tentativa de limpeza do dia anterior onde, ao lado de um autocolante a uma marca de chá frio, se notavam os resquícios do detergente utilizado para o lavar. Do lado de fora, acumulava-se o pó cinzento deixado pelo pó e pela poluição, pelos carros, pelas motorizadas e autocarros que todos os dias passavam e paravam à porta. Estava na Av. Duque de Loulé e o sol brilhava do outro lado da rua. Sentado numa cadeira, mais ou menos confortável, olhei primeiro para a rua. Concentrei-me, ainda ensonado, em perceber o que, ao meu redor, acontecia nesses minutos subsequentes à minha chegada. Em ambos os lados, uma paragem de autocarro, o 45, aquele que já foi e onde as pessoas também já voltaram a formar uma multidão, gente amontoada em redor de uma cabine de espera, umas a ouvir música com os auscultadores, imunes ao barulho circundante, imunes às pessoas à volta. Outras à conversa com a pessoa do lado, decerto conhecidas e partilhando o mesmo destino. Outras ainda, de olhar vazio, sem alma visível e com ar de quem não se preocupava em encontrar essa alma, mas todas à espera de se dirigir a algum lugar. Durante vários minutos em que mirei o movimento, atentei, cuidadosamente, nesse caos ordenado, no barulho dos motores, no fumo saído dos carburadores e senti-me fixo a uma cadeira, sem margem de partida, como se os pés da cadeira fossem os meus e os meus pés fossem os alicerces que ligam uma casa à terra.

Voltei a olhar para mim próprio, refletido numa mínima chávena de café, de uma qualquer marca comercial e, lá dentro, um creme de arábica, ou de robusta ou dos dois porque, dizem-me, é esse que faz o melhor café. 90% de arábica e 10% de robusta. Já os vi, são bastante diferentes os grãos. Vi-os nos montes e vales de Ermera e de Ailéu, onde ainda são verdes e vermelhos, envoltos no cheiro típico das folhas das árvores que os seguram. Parei o olhar mais uma vez antes de perturbar a serenidade do creme e veio-me à memória um café de Laco, tão especial e diferente quanto raro. Bebi uma vez, gosto inconfundível… poupo os pormenores da forma de produção.

Despejei um quarto da saqueta de açúcar no café e mexi com uma colher proporcional ao tamanho da chávena e do pires em que assentava. De forma igual a esta chávena, todos assentamos no nosso pires e todos somos parte isolada de um conjunto que precisa das componentes para funcionar… à semelhança de o motor de um dos carros que vi passar na rua, se quisermos. Sem me adiantar muito na filosofia, as nossas raízes, a nossa terra, a nossa família, as nossas paixões, os amores e os amigos são a nossa chávena, o nosso pires, o nosso açúcar e a nossa colher que nos acordam e enchem de adrenalina e de vida. Eles são também o nosso doce e a nossa canela que completam o quadro pintado. Para o mesmo efeito, poderíamos também sugerir o chá, igualmente aglomerador de partes num todo, tal e qual o café. Isto se, por razões de ordem vária, não podermos consumir este último.

Trincado o pastel de nata e bebido o primeiro sorvo de café, olhei em frente e vi, de forma um pouco menos difusa, o largo corredor que era a cafetaria. Na segunda mesa a seguir à minha, um casal, acabados de chegar e sentados frente a frente, uma só figura assimétrica, mas que não proferia uma única palavra. Dos seus gestos, da sua comunicação não-verbal, apercebi-me que não tinham sido acordados pelo café e que a sua comunicação precisaria de muitos cafés e, fundamentalmente, de muito açúcar. Não se olhavam nos olhos, nem as respostas continham mais do que monossílabos. Dirigi mentalmente uma curta-metragem da sua possível discussão e senti que, às vezes, o silêncio diz mais do que muitas palavras. Nos créditos finais, esperei que no dia seguinte já falassem e dissessem as palavras que naquele dia engoliam junto com o café. Esperei que, futuramente, os seus olhos se voltassem a encontrar e falassem sem fugir. Sem surpresa, nenhum deles olhou para ninguém quando saiu. Reparei que ninguém se olhava verdadeiramente na cafetaria.

Conformado, acabei o café, comi o resto da massa folhada que ainda aguentava o creme do pastel e levantei-me, depositando os pires, a chávena e a colher numa estante e saí, também sem olhar ninguém nos olhos. Já na rua, olhei de novo o dia e vi-o diferente. Tinha já em mim o dia e o despertar da consciência das raízes, da terra, das pessoas, da família, do amor, das paixões e dos amigos. Pronto a enfrentar-me debaixo do Sol, os óculos voltaram a cobrir-me o olhar, facilitando o olhar ao céu azul e brilhante. Eram 7.30, o ruído já não me incomodava e as pessoas pareciam sorrir.

 

Imagem daqui