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DOIS DEDOS DE CONVERSA E UM COPO DE TINTO

- É verdade, meu caro amigo, lembro-me como se fosse hoje! As nossas conversas eram feitas de copos de tinto, acompanhadas por leves tiras de presunto e de pão alentejano, com azeitonas. Um bom vinho alentejano aquele que se bebia nos bancos da nossa tasquinha. O meu amigo, lembra-se? Os assuntos, esses, variavam de acordo com os temas da atualidade, as capas dos jornais do dia ou as histórias do passado, no tempo em que nos conhecemos. O meu amigo, lembra-se? – perguntava, enquanto deitava mais um pouco de vinho no copo, deixando-o meio cheio e meio vazio, ao mesmo tempo.

NO REMANSO DAS PALAVRAS INQUIETAS

“E sabem a mosto, a sol… a vida
a insónia, a boémia… a poetas
estes versos feitos à medida,
no remanso das palavras inquietas”

QUASE

Esta é uma quase história, escrita no momento em que quase agarrava na caneta para escrever. Pensei numa história que pudesse representar quase tudo aquilo que queria dizer em poucas palavras, mas nenhuma história fica verdadeiramente contada sem que se conte desde o início – aquele momento crucial em que se começa a desenrolar o enredo, as peripécias dos heróis e das heroínas. Que se acabe tudo no fim, com uma catarse que remate as ideias, lhes conceda o devido lugar no pódio, assegurando os louros… sem que pelo meio, no desenvolvimento se coloquem as intrigas que desafiam os autores na sua epopeia narrativa.

ADORMECER

- Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição, e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo: admiti-os na luz da vossa presença (Oração Eucarística II – Intercessões).

Numa noite fria de inverno, no piso gelado de neve, regressando a casa do trabalho distante em terras frias e solitárias, adormeceu ao volante. António adormeceu. Em casa, a família, no lar quente, em sala com tapete de Arraiolos, e com televisão que passava canções de Natal e de felicidade pelo nascimento de Cristo, esperava-o. Em casa, todos esperavam António.

CHAPÉUS HÁ MUITOS…

Venho hoje falar-vos de uma prodigiosa descoberta que fiz há um mês, mais coisa menos coisa, dando assim o mote para um dos meus usuais devaneios.

Estava eu sozinha com muito pouco ou nada para fazer quando resolvi dar uma volta virtual pelos canais de filmes e séries que tenho em casa. Assim, peguei no comando e o meu polegar deteve-se do seu frenesim quando apareceu no ecrã o filme “Jaws” (Tubarão), um dos clássicos e, somente por acaso, um dos meus prediletos. Entusiasmei-me, claro, e graças à maravilha que constituem as novas tecnologias digitais, simplesmente, voltei para trás até ao princípio do filme.

SORRISO

Eu sorri, sabes? Sorri tanto quando te vi chegar que os meus olhos se inundaram de água salgada de felicidade. Sorri como já tinha sorrido antes tantas vezes. Sabes que nós, aqui, neste hospital pintado de paredes monocromáticas e sem sensibilidades, não sorrimos. Somos manipulados para não sorrir nem deixar que o nosso rosto passe as memórias do verão deslocado para camas de hospital.

O TELEFONEMA

O telefone tocou durante largos minutos. Era um daqueles telefones pretos, pesados que rodava com a força de um dedo indicador. O som ecoava por toda a casa e o estrondo ficava ainda durante largos minutos. O silêncio que se seguia deixava antever o isolamento daquela casa. As portas eram de madeira maciça e o percurso da antiga casa senhorial longo até que se pudesse chegar ao telefone.

MANTA DE RETALHOS

No primeiro dia do mês de agosto, a família reunia-se toda à beira da arramada e a matriarca da casa aparecia da porta mais baixa, fechada a trinco e a cadeado. Vestida de lenço negro na cabeça, avental cinzento e a cara enrugada pelos anos, trazia nas mãos uma manta de retalhos. Uma manta tão bem feita, produzida durante os meses frios do inverno, aquecida no calor dos primeiros dias de julho e arrefecida e lavada pelo vento no fim de setembro, princípios de outubro.

A CONVERSA

Hoje não me apetece falar contigo. Acho que aquilo que era para ser dito já foi tantas vezes que não vale a pena nos repetirmos em parágrafos longos e cansativos como fizemos tantas vezes. E para quê? Para acabarmos sem nos falar durante semanas como sempre aconteceu? Hoje não me apetece que fales comigo. Imagina que sou um manequim estático e mudo, sem vida. Imagina que sirvo apenas para enfeitar uma montra de uma loja numa rua qualquer de Portugal, onde pouca gente passa e onde está um cartão escrito a marcador e colado a fita-cola que diz: Saldos de 15 de agosto a 14 de setembro.

O MEU CÃO

O meu primeiro cão chamava-se Piriquito e a memória mais remota que tenho dele remonta à altura em que eu teria 3 ou 4 anos. A presença de um animal de estimação para uma criança, especialmente um cão, sempre marca e torna a vida muito mais interessante. Recordo-me bem da nossa amizade profunda, da nossa cumplicidade. Era um cão baixo. Nenhuma raça em especial, mas muita personalidade. Guardo ainda fotos dele que nos tiraram. A nossa amizade manteve-se enquanto foi possível pois, aquando do meu nascimento, o Piriquito já era velho e a duração das nossas vidas é diferente. Jamais esqueci os momentos até hoje. Os seus olhares de aprovação, de inclinar ligeiramente a cabeça quando me queria dizer alguma coisa ou pedir comida, essencialmente por telepatia pois não nos seria fácil utilizar o mesmo código de linguagem. Era o meu cão, o meu melhor amigo. Às vezes fazíamos corridas monte acima, no meio do Caldeirão, em que, obviamente, ele ganhava sempre. Correr com quatro patas é, aparentemente, mais vantajoso do que com duas. Acho que as galinhas têm a mesma opinião que eu.

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