26 Setembro 2015      10:09

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QUASE

Esta é uma quase história, escrita no momento em que quase agarrava na caneta para escrever. Pensei numa história que pudesse representar quase tudo aquilo que queria dizer em poucas palavras, mas nenhuma história fica verdadeiramente contada sem que se conte desde o início – aquele momento crucial em que se começa a desenrolar o enredo, as peripécias dos heróis e das heroínas. Que se acabe tudo no fim, com uma catarse que remate as ideias, lhes conceda o devido lugar no pódio, assegurando os louros… sem que pelo meio, no desenvolvimento se coloquem as intrigas que desafiam os autores na sua epopeia narrativa.

Mas esta é uma quase história. E é quase porque não se lhe conhece final visível nem os heróis se envolvem em enredos complexos que acabam com o desaparecimento ou morte de várias personagens ao longo da história. Na sua maioria são quase figurantes que asseguram que um cenário quase idílico seja entendido como tal.

A narrativa que aqui se conta começou há muitos séculos, diria há quase mil anos, ou melhor pensando, quase há vários milénios ou milhões de anos. Há quem diga que quase dava uma enciclopédia todos os acontecimentos que se podiam narrar em cada século. Obviamente teríamos de ir às pequenas intrigas de bairro ou de aldeia, mas quase tudo, mesmo quase tudo entraria nos livros, até os próprios livros dos contabilistas. Enfim, continuando com a narrativa. Há nela um cenário quase perfeito que se vai evoluindo a ele próprio. Vai mudando ao longo dos anos. Onde havia uma árvore grande e ancião, agora haveria um bloco de cimento ou de alcatrão espalhado em cima da terra quase seca.

O nosso herói é casado com a nossa heroína, alguns anos depois de se terem conhecido numa das aventuras anteriores que quase acabou em tragédia, mas teve um desfecho de quase felicidade não fossem as discussões maritais subsequentes. Nos anos posteriores, muitos séculos depois, perante a passagem incrédula do tempo, quase não havia nada a relatar, a não ser as quase tentativas de inovação nessa terra que quase proclamavam ser o seu reino. E assim decorreu a sua aventura até que quase chegámos ao desfecho. Mas faltava sempre qualquer coisa para haver um final feliz. Ou quase acertavam no euromilhões, ou quase ganhavam a lotaria. Ora se enamoravam de novo, ora nascia um novo filho e começavam o desafio de educar mais uma criança para enfrentar as dificuldades deste mundo. Faltava sempre o final feliz a rematar uma história que parecia não ter fim.

Foi num desses anos, num quase tempo, existente num Universo paralelo a este nosso. Não quero de maneira alguma fazer comparações. Quase não havia alguém para combater. O herói sentia-se desanimado. Era preciso encontrar vilões, ou pelo menos encontrar alguém que fosse quase mau. Não seria tão difícil, dizia a heroína, que entretanto amamentava mais um dos recém-nascidos. Com as cinco crianças, duas delas já adolescentes, quase não tinha tempo para nada e, além disso, ainda trabalhava e tinha de tratar da casa e manter as contas em dia. Organizar tudo, quase se poderia dizer. Pois, o nosso herói era um chefe de família mas quase não fazia nada por casa. Quase tinha vontade disso, quase todos os dias dizia à esposa que ia tratar disso. Mas, já dizia a sabedoria popular, faltava o quase. Pois, caro leitor, nesta história não falta o quase como já terá reparado. É a história de um território quase animado, quase desanimado, quase contente quase triste, quase produtivo quase estéril. É uma história de pessoas, quase todos heróis nalgum momento e quase todos vilões em certas alturas, embora nunca o confessem, mas fundamentalmente quase todos figurantes em muitos momentos.

O herói estava especialmente inspirado e tinha encontrado um vilão. Capa nas costas para não fugir ao momentum, nem ao convencionado nos livrinhos de banda desenhada. Levou os filhos à escola, dois na creche, um na escola básica e dois na secundária, entrou no carro super especial que quase tinha superpoderes mas era uma stationwagon e partiu em busca da adrenalina que faltava. Ia, tinha a certeza absoluta, salvar o mundo, em especial o seu território, ou, vá, o bairro. Lançado no asfalto, todos os figurantes o olhavam em jeito de admiração. Há muito que não viam um herói em ação, daqueles que, depois dos livrinhos de banda desenhada, aparecem na televisão. Esta era um desses, ou quase… Bem, lançado no asfalto, a 50km à hora porque nas localidades é a velocidade permitida, corria em busca do vilão e ansiava por um bom combate à boa velha maneira da sua memória, já algo enturvada pelo tempo.

Chega ao local. Não se via quase ninguém. À porta um segurança de aspeto ameaçador e o nosso herói não se intimida e enfrenta-o. Quase chega a haver um momento de tensão mas desvanece… Quase entra na casa do vilão, quase o enfrenta e repõe a ordem mas, infelizmente, como tudo na vida, esqueceu-se do essencial, o cartão de identificação. Sem isso não entra. Quase teríamos oportunidade de contar a história hoje, mas faltando o essencial, ficará para uma próxima oportunidade porque, sejamos realistas, como nas telenovelas, há sempre qualquer coisa que pode continuar e quase todas têm próximos capítulos ou deixam sequelas.