30 Janeiro 2016      11:58

Está aqui

A TASCA

O Manuel entrou na tasca da aldeia num dia de chuva e de vento. Estas alturas do ano eram cheias de vento, frio e água que caía dos céus como se alguém a estivesse a despejar a partir de um daqueles baldes chuveiro que Manuel usava naquela divisão da casa, que era como se fosse uma casa de banho. A sua mulher, Antónia, aquecia a água à lareira e, nesse balde, dentro do alguidar, Manuel tomava banho aí de oito em oito dias, porque o processo era moroso e complicado. As necessidades, essas eram feitas lá mais longe do monte, mas delas não falaremos para não tornar o assunto demasiado escatológico. Queremos falar da tasca da aldeia e é nessa que nos focaremos.

O Manuel entrou na tasca. A porta não era muito larga nem muito alta. Tinha sido feita à medida, parecia, das pessoas dos outros tempos, em comparação com as de hoje que são pessoas altas. Nesses tempos, ainda as pessoas eram de estatura média/baixa e continuam a ser, diria eu, ou então a ideia de construir as casas é que era assim. Mas, também, não pretendemos centrar a tasca num tempo específico. Aquilo que sei é que a tasca ficava situada numa aldeia, mais ou menos a meio, do outro lado da igreja, e o Manuel, aí por volta do meio-dia entrou lá dentro, num dia de chuva.

Atrás do balcão, feito em tijolo e rebocado num cimento demasiadamente areado, assentava em cima uma pedra de mármore, comprida e gasta pelos panos de limpar que a mulher do João, o taberneiro, aplicava. No mármore, já entranhadas, as marcas do vinho tinto, aquele carracascão que deixava os lábios, os dentes e as línguas marcadas com os restos do sumo das uvas. Era forte, tão forte que alterava os andares dos homens que lá passavam as tardes a discutir as sementeiras, o tempo e a pagar copos uns aos outros. No fundo do balcão, encostado a uma parede, uma pipa pequena de vinho, com uma velha torneira de onde o João, taberneiro desde que o pai lhe passara o encargo da tasca, retirava o vinho a copo para os clientes que, todos os dias chegavam, se sentavam e se entretinham tardes e noites. Em toda a tasca, um cheiro carregado deixado pelo álcool do vinho e que se sentia a metros de distância, muito além da porta.

Afastando as fitas que tentavam impedir as moscas de entrar, baixando-se para não bater no saco de plástico cheio de água, destinado ao mesmo efeito, Manuel entrou. Olhou em redor e sentou-se numa das quatro mesas de tampo de mármore e pés em ferro enferrujado. Sentou-se numa das cadeiras de platex, imitando o mármore tão bem como se fosse verdade. Por causa da chuva, toda a tasca estava repleta de humidade… o balcão parecia borbulhar água. Na mesa, os copos quase deslizavam e as cadeiras deixavam as calças húmidas, embora estivessem já molhadas pelos pingos de chuva que lá fora caía. Nas arramadas, onde a palha aquecia as bestas (burros e éguas), estava mais quente e menos húmido do que na tasca de mármore e de chão em barro vermelho.

Manuel pediu um copo de vinho a João e João encheu-o e perguntou que petisco queria a acompanhar o copo. Em cima do balcão, uma travessa de torresmos, um frascos de azeitonas da salmoura, dessas salgadas, e uma travessa de orelha de porco em azeite, alho e coentros. Manuel disse:  - Então vá lá um pratinho de torresmos e um de azeitonas dessas salgadas para o vinho correr melhor. João serviu o pedido do único cliente dessa hora e virou-se para ligar a telefonia e ouvir as notícias da emissora nacional. Na rádio, alguém falava de notícias que Manuel e João ouviam mas não ligavam. Ligavam só aos fados de Alfredo Marceneiro e de Fernando Farinha. O resto era disco riscado e não interessava.

Manuel, sentado, olhava pela pequenina janela que não se abria e via a chuva bater. Nenhum dos dois falava, nem Manuel nem João. O segundo ocupado a limpar o balcão de mármore e a pensar nas contas da vida, na vida dos filhos e nos netos que não tinham nascido ainda. Nisto entrou Zé, irmão mais novo de Manuel. Não se falavam. Desde há anos, mal de partilhas, coisas das mulheres que se tinham zangado e Zé que se tinha deixado levar na conversa. A família tinha-se partido. Não havia volta a dar. Nem as negociações de João na tasca nem uns copos de vinho dariam volta a isso. Cada um em seu canto. Zé sentou-se, pediu um copo de vinho e, olhando para a mesa do irmão mais velho, pediu um prato de orelha de porco em azeite, alho e coentros. Manuel levantou-se, deixou uns tostões para pagar a despesa e, abrindo as fitas, saiu pela porta fora. João olhou para o chão, abanando a cabeça. Lamentou que a vida fosse assim. Pensou nas suas partilhas, nos filhos e nos netos que havia de ter e na roupa que a mulher tinha deixado estendida na corda, antes de ir à vila.

 

Imagem daqui