29 Dezembro 2019      13:18

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Twin Peaks

Alguém que admiro, digo apenas que é um devoto de Madonna (provavelmente a ligação directa à adolescência que o faz lidar melhor com o seu envelhecimento – mas que sei eu?), fez-me reviver esse lugar de estranhas afectividades que era o liceu de Twin Peaks, onde no meu mundo de sonhos também estudei entre Outubro de 1990 e Maio de 1991, sabendo agora que o edifício vai ser demolido.

Antes, passei, em modo delirante, pelo episódio-piloto da série, dirigido pelo meu então pai-espiritual, David Lynch (o homem que dirigira quatro anos antes o meu filme favorito, Blue Velvet).

Nunca suportei o Bobby, e, obviamente, James era o meu melhor amigo. Quanto às raparigas, para ser sincero, não passavam de quadros belos e distantes, pelo que não me apaixonei por nenhuma durante essa breve estadia. O medo é o melhor conselheiro das paixões adolescentes, e, excepto a Donna, elas eram assustadoras.

O rosto morto de Laura Palmer, esse sim, marcou um antes e um depois –

O rosto de Laura Palmer. Anilado, ausente de vertigem, mas ainda belo. O episódio-piloto. O tempo que Lynch deixa correr até ao instante dessa terrível descoberta é um dos maiores prodígios da história da ficção audiovisual, tal como a explosão das emoções que se lhe segue.

Veja-se o dois em um, quando os pais de Laura descobrem em simultâneo sobre a sua morte. Leland, o pai está numa reunião de negócios. A certo momento recebe um telefonema de Sarah, a mãe. Não sabe onde a filha se encontra e da sua voz sobressai, como esgar (reacção típica de Grace Zabriskie, actriz disfuncional, habitué nos filmes de Lynch), o pânico. Ao fundo vemos chegar o Sheriff, que sabe o que nós sabemos. Leland diz à mulher para não se preocupar, até que vê o Sheriff. Um instante de silêncio. Silêncio atroz. Leland pergunta: “It’s about Laura?”, com a mulher ainda no outro lado da linha. O Sheriff confirma. Leland grita o nome da filha… No outro lado da linha, um choro continuo, não menos esgar. A câmara percorre o fio do telefone num plano-sequência que exclui rostos. Sobram sons. Em nenhum momento foi pronunciada a palavra morte ou anunciado um assassinato.

Ou os prenúncios, como os que Donna e James tiveram na sala de aula.

Ao todo, entre a descoberta e a notícia, são 25-30 minutos de perfeição narrativa e um tratado de como se devem expor emoções em ecrã, a desaguar no plano mágico sobre a fotografia de Laura (a heroína do liceu) ao som das harmonias inquietantes de Angelo Badalamenti.

Para além disso, havia um sabor a novidade. Nunca se tinha visto sequer parecido em televisão.

O episódio-piloto tem cerca de 90 minutos. Os dois terços seguintes são a segunda parte do assombro-Lynch. Do regular para o absoluto extravagante, vestindo a pele do lobo mau, como já fizera em Blue Velvet. Ou seja, do mistério policial – quem matou Laura Palmer? –, mistério da narrativa, para o mistério expressionista do ser perplexo e só perante a indeterminação da existência (para qualquer outro diríamos que seria sobre o Bem e o Mal, porém, viemos a saber mais tarde, a Lynch apenas interessa descobrir as origens do Mal), o enigma maior a que se pode chamar Mistério, em maiúscula, como os crentes fazem perante a figuração do divino. Em Lynch, o inflamável, o incontrolável, o irresolúvel e o imaterializável…   

Ah, e quem matou Laura Palmer foi, como não podia deixar de ser, o pai, perdão, o Pai.

 

Imagem de vishows.com.br