16 Junho 2018      12:57

Está aqui

Início e fim

Mantenho-me sereno. Sempre sereno. Exceto quando perco a serenidade e me confundo comigo próprio e me iro comigo e sinto que os outros estão, eles, irados comigo. Estou calmo. E no meio desta calma que, mais do que aparente, é concreta. Escrevo estas linhas como quem fala em rima. Não me demoro no meio e faço com que cada verso rime com o próximo. Tudo isto para falar do início e do fim. Das coisas que começam e das que acabam sem dar sinal.

Início. Das coisas que começam, aquelas que se iniciam. A história que principia. Princípio. O rapaz estava em frente a um abismo e olhava as coisas que, do lado de lá do abismo se passavam. Queria contar a história dessas coisas que via ao longe mas não conseguia lá chegar. Entre ele e as coisas havia o vazio e esse espaço não tinha nada. De braços cruzados, apenas pestanejava. Todo o resto do corpo estava imóvel. Vestia uma t-shirt branca, apertada à pele, mostrando os contornos de um corpo que não fazia ginásio. Era desleixado. Sereno. Apenas os olhos se abriam e fechavam. Pensava também, mas do pensamento não se veem os movimentos. Dos movimentos não se veem as coisas. E pensava. Queria contar. Pôr nos lábios os movimentos do pensamento.

Continuação. O rapaz conseguiu avistar a contadora de possíveis e plausíveis histórias que estava do outro lado do precipício. Vi-a com os olhos e retratava-a à medida que pestanejava. Guardava dela instantâneos de máquina fotográfica. Do lado dela, o mesmo. Ela conseguia ver-lhe o vulto, mas a distância distorcia a imagem que tinham um do outro. A mesma coisa aconteceria se estivessem apaixonados. A paixão distorce a visão das pessoas, quando o fulgor está no auge e nada é imperfeito. Ela sabia a continuação da história. Ela não lhe conseguia contar. O pensamento dela trabalhava tanto como o dele, mas com premissas diferentes. Haviam de se encontrar, se houvesse entre eles uma ponte. Não havia.

O rapaz deixou de estar imóvel. Apetecia-lhe ser proactivo e iniciou os gritos. Gritava como quem quer ser ouvido. E queria. A rapariga queria ouvir. E não conseguia. No início, as pessoas não se ouvem, quando se conhecem, analisam-se mas nunca se conhecem. Como uma cebola, vamo-nos descobrindo às camadas. Há, como nesta história, um espaço vazio entre nós. Um abismo que tentamos aproximar. As decisões que tomamos, iniciadas logo no princípio. Tentar estreitar o abismo, pensar como construir, eliminar. Chegar ao fim acompanhados.

O fim. As coisas que no início começaram e se prolongaram na continuação. Tanta coisa no meio. Muitos acontecimentos decorrentes das decisões. Como o rapaz em frente ao abismo, indeciso no salto em frente, para o nada se quem o espera do outro lado não lhe der a mão. Como a rapariga que o espera e que anseia que não seja o fim. Os seus pensamentos deambulam e iludem-se. Ela desespera. Ele é sereno. Nada acontece ao acaso. As coisas são fruto de ações e decisões.

Se o rapaz saltar ao encontro da rapariga, talvez não chegue ao lado de lá. Será, como se poderia dizer, um salto no escuro. Fá-lo-ia sem pestanejar. Fá-lo-ia por amor, por ela, enquanto toda a imagem ainda é perfeita e a paixão elimina abismos. Um dia poderá não ser assim. Um dia poderá ser que seja assim e não mude. Dúvidas. Pensamento de quem duvida e não sabe, mas não age. Ele continua imóvel e ela impaciente. Saltará? Virará costas? Olhara a rapariga ao longe e viverá assim o resto dos seus dias? Não sei. Só o fim o dirá.