1 Abril 2020      17:14

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Relatos de um habitante de Madrid - Mais um cidadão a sobreviver durante esta crise

Mais um cidadão a sobreviver durante esta crise - relatos de um habitante de Madrid.

Atualmente estamos num ponto da vida em que pensamos, principalmente, no presente, mas sem desprezar o futuro – que é igualmente ou até mais importante.
Num desses momentos de reflexão temporal dei por mim a pensar totalmente no oposto e, consequentemente, consegui juntá-los – passado, presente e futuro.
Perguntei a mim próprio, várias vezes, como era o meu passado (e não assim tão longínquo). No curto espaço de seis meses a minha vida passou de um turbilhão, para um semi-turbilhão para voltar, agora, para outro turbilhão!

Há seis meses, na primeira fase desta agitação, tinha acabado de ser demitido de um emprego, não estava a estudar e não tinhas quaisquer perspetivas futuras. Fui forçado a sair de um local que fui, genuinamente, feliz.
Nesta fase de aprendizagem em que a esperança decrescia a cada instante tive, mais uma vez, uma ajuda do além. Não, não acredito em nada de misticidades e afins mas, no entanto, sei que tenho um anjo da guarda (apenas partilhei isto com uma pessoa e agora partilho com todos os que leem isto). Neste período e, certamente, com a intervenção divina que tive, surgiu uma oportunidade única e excecional de mudar por completo a minha vida e ir trabalhar e viver numa cidade magnífica – Madrid.
Nesta mesma altura, se me fizessem as perguntas básicas sobre os “nuestros hermanos” as minhas respostas iam ser totalmente diferentes do que atualmente são.

Gostas de espanhóis? Não!
Gostas de Espanha? Não!
Tens curiosidade em visitar Madrid? Não!

Mas, mesmo tendo em conta a minha opinião sobre Hispânia, todos os que me conhecem sabem o quão pró-Europeu e pró-mudança eu sou. Esta mudança não demorou nem meia dúzia de dias e lá estava eu, o menino da mamã, desamparado em Madrid, numa cidade com 6,5 milhões de habitantes, sozinho, sem saber o idioma (finalmente percebi que o Portunhol, língua que sou fluente, pouco ou nada tem a ver com o castelhano) e com tudo por aprender.

E assim foi, fui e não me arrependi! Aprendi bastante em vários aspetos: desde a níveis profissionais, legislativos, culturais, tudo o que é possível imaginar. Dei uma oportunidade a algo que não gostava e acabei por me apaixonar.
Curioso? Bastante!
Apaixonei-me por uma cidade linda em que todos os dias são um sábado em Lisboa, pela cultura, pela gastronomia (mas sem deteriorar a minha preferência pela feijoada de choco) e até pelo idioma! Claro que não foi tudo perfeito. O que mais me custou foi, sem dúvida, as saudades dos amigos e família e, principalmente, das minhas duas cadelas. E, ainda assim, aquela cidade é tão magnífica que me permitia colmatar isso visto a estar apenas a uma hora de casa.

Lá estive eu, durante seis meses, em Madrid, naquela cidade cheia de luz, a viver, a trabalhar e a criar a minha independência sempre com um sorriso na cara.

Recentemente, e para ser mais preciso, no dia 17 de março fui assaltado e fiquei sem a minha carteira (em que estavam todos os meus documentos) e o meu telemóvel. Prontamente entrei em contacto com o consulado para tratar da
documentação que, de forma seca e arrogante, me reencaminharam para um agendamento online. Sou uma pessoa moderna e tecnológica e imediatamente solicitei o agendamento através dos meios disponibilizados e recebo a infeliz (ou talvez não) mensagem: “Não existem atos consulares disponíveis”.

Neste momento, começou a crescer, de forma assustadora, o número de doentes infetados pelo vírus Corona em Madrid e as companhias aéreas desceram, também de forma assustadora, os preços das viagens. Aproveitei, pedi uma semana de férias e de um dia para o outro estava novamente com a minha família.

Pergunto-me, neste momento, se foi o meu anjo da guarda que quis dar força ao ditado popular: “Há males que vêm por bem!”. Mais uma vez, curioso, não?
Entretanto surgiram os primeiros casos de COVID-19 em Portugal, fui submetido aos testes para verificar se “o bicho se tinha apoderado de mim” – felizmente deu negativo e a autoridade de saúde entrou em contacto comigo e submeteram-me a isolamento profilático. No decorrer da minha quarenta ativa e com a responsabilidade de voltar ao trabalho, numa cidade completamente infetada por este surto, as fronteiras foram fechadas e todos os transportes públicos foram cancelados. Não consigo voltar e, provavelmente, vou perder o meu emprego e a minha vida em Madrid.
Neste momento, estou em Portugal e sem saber o que fazer. Estou eu e está o mundo!

Sei que aquela cidade magnífica que eu conheci não o está a ser! Será que algum dia vai voltar? Será que o paradigma que nós conhecemos vai voltar a ser o mesmo? Tenho tantas perguntas que não consigo obter respostas na minha cabeça! Resta-nos apenas acreditar que vamos superar e que a o ser humano tem sempre a capacidade de dar a volta por cima. A História prova isso mesmo e neste momento estamos a viver a História.
E de uma coisa estou certo: “Tudo vai a estar bien!” – como dito no bom portunhol!

Fui só eu e um copo de vinho a desabafarmos.

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João Côrte-Real nasceu a 1 de julho de 1995 e é natural de Setúbal. Frequentou o curso de Relações Internacionais na Universidade de Évora e atualmente encontra-se a desempenhar funções no setor bancário em Madrid, Espanha. Os seus temas de interesse abordam principalmente as áreas económicas e políticas, destacando-se duas áreas principais: Políticas nacionais e internacionais e o funcionamento do sector bancário. Atualmente divide o seu tempo entre o estudo, a cultura e o trabalho