7 Junho 2020      10:54

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A ordem mundial anarquista da atualidade

Alguém tem um relógio? Que dia é hoje? Hoje comemoram-se os 2 meses e 9 dias em que as nossas vidas mudaram radicalmente e tentamos arduamente para que voltem ao normal, mas de nada vale o esforço se não somos nada para além de carne e osso, sentimentos e pensamentos que facilmente são corroídos por um vírus que tem ceifado imensas vidas ao longo de todo o mundo e, também, por aqueles que convivem connosco.

Há quase 3 meses que nos pediram, para o nosso próprio bem e pelo dos outros, para realizarmos uma quarentena, mas o que é, efetivamente, este pedido? Fomos obrigados a permanecer em casa, afastados de todos aqueles que não compõem o nosso agregado familiar para não contrair nem transmitirmos a doença infeciosa do Covid-19. Eu, como muitas outras pessoas, acreditámos ficar em segurança nos nossos lares enquanto observávamos tudo à nossa volta a desmoronar; convencemo-nos de que seria fácil, nada de mau iria acontecer. Admitimos que a paz, a segurança e a confiança prosperariam na nossa residência; mas não. Não ficámos confinados em casa, estávamos e ainda permanecemos confinados à nossa mente, rendidos às nossas inseguranças e dominados pelos medos exclusivos que retêm a respiração, e não soltam. Nada soltou. Nada nem ninguém se livrou. Prometeram-nos uma segurança falaciosa, ofereceram-nos ausência de empatia. Nas últimas semanas registámos acontecimentos chocantes e brutais; grotescos e assustadores. Quem treme com o que tem acontecido são denominados de “anarquistas” pelos que não tremem, nada temem e em nada creem – os “não-anarquistas”.

Iniciemos o avivar das memórias com a notícia lamentável da morte provocada por Rubén Couto à jovem Beatriz Lebre que, pouco ou nada interessa, era estudante universitária do curso de Psicologia, tocava piano e trabalhava numa loja do centro comercial Colombo, e definia-se no seu perfil do Linkedin como uma “apaixonada por música, pessoas, cinema, teatro, filosofia e literatura". Seria fundamental referir isso para que a sua morte fosse mais lamentada? Como dizer que a morte de uma jovem mulher é assustadora, independentemente do seu percurso? Como argumentar que a identidade deve ser protegida? Os media atacaram-nos com artigos online e noticiários com intenções e sentidos paradoxais: Porquê expor a vida de uma mulher assassinada por um homem? Porquê enfatizar a vida académica e profissional do assassino? Será ele mais ou menos criminoso e homicida por estar à frente de associações ou eventos? Porquê a referência ao seu namorado, também de Elvas, ao alegar um possível relacionamento amoroso com o homicida?

Denoto que, cada vez mais, é difícil colocar-nos na posição do próximo que está a sofrer com a morte de um ente querido e, para piorar o sofrimento e alimentar a fome daqueles que gostam de drama, a imprensa portuguesa resolve tentar justificar o ato do assassino: “O que levou Rubén Couto a matar Beatriz?” é o título de um dos artigos. Garanto com toda a certeza do mundo que a culpa não terá sido da jovem por ter dito um “não” ou ter proferido ou feito qualquer outra coisa. O que matou Beatriz foi o machismo e a sensação da falta de poder e influência sobre ela, vinda de Rubén. Será que afirmarem que mantinham uma relação amorosa justificaria a falta de submissão da jovem perante o potencial parceiro? Não seria, então, mais correto confirmar que seria um caso fatal de uma vítima de violência doméstica? Fruto de um relacionamento, ou não, Beatriz foi uma vítima de mãos masculinas. Chega de desculparmos o agressor e assassino. Chega de criarem eufemismos à volta de situações irreparáveis. Os revoltados com a perda desta vida são os “anarquistas”, já os outros estão dispostos a remediar ou a suavizar o crime, focando-se noutros detalhes irrelevantes.

Passamos imediatamente para a morte de um homem afroamericano, de nome George Floyd, ocorrida a 25 de maio, asfixiado pelo agente de autoridade de nome Derek Chauvin com um joelho no seu pescoço durante aproximadamente 9 minutos. Nove minutos fatais, meus caros. Nove minutos exaustivos a rogar por ar: “Não consigo respirar, por favor. Não consigo respirar”, e intercalados com o chamamento pela sua progenitora, a gastar o pouco oxigénio que lhe restava a chamar pela própria mãe. Foi vítima de violência policial racista, tal como muitos outros indivíduos. Embora os seus últimos momentos tenham sido gravados e lançados na internet, os “não-anarquistas” sentem-se, portanto, no direito de contestar a autenticidade do acontecimento e, até mesmo, desculpar a ação do policial. Não existem justificações para o homicídio de uma pessoa. Onde é que já vimos uma situação parecida? Exatamente, com a Beatriz Lebre. Uma onda de revolta e descontentamento iniciou-se, até hoje, sendo expressa através de manifestações, violentas e pacíficas, que têm sede de justiça, paz e igualdade independentemente da raça de uma pessoa. Ainda assim, os que lutam pela causa e defendem os que mais precisam de apoio neste momento são considerados os “anarquistas”.

Finalmente, chegamos à criação do movimento americano chamado Antifa – uma conglomeração de grupos de esquerda – que é especialmente caracterizado pela sua oposição, repulsa e luta contra o fascismo. Nas suas manifestações contra a extrema-direita expõem identidades de nazistas e fascistas, e também se mostram contra os movimentos racistas, xenófobos e supremacistas brancos. Os “não-anarquistas” condenam este movimento como se, definitivamente, fosse o real problema que engloba os crimes acima indicados. Os “anarquistas” apoiam estas ações porque não querem que o mundo caia no regime política fascista, um impedidor de liberdade, equidade, igualdade e paz. De facto, não consigo identificar o mal existente em querer preservar um mundo livre.

No fim disto tudo, esquecemo-nos da pandemia que ainda se propaga todos os dias. O aparecimento de uma nova doença não foi suficiente para impedir que mortes desnecessárias acontecessem, nas mãos de crimes ideológicos errados. O vírus não foi suficiente para aprendermos a amar o próximo. A pandemia não permitiu que vidas jovens fossem salvas e mantidas. O aparecimento de uma nova doença não foi suficiente para a definição do conceito de senso comum, de moral e de ética; o que será, então, preciso para que notem que a sua visão do mundo está errada e criminosa? Aqueles que mais lutam pelas causas, direitos e deveres são considerados “anarquistas”, quando os únicos que estão a gerar conflitos e desordem social são aqueles que enaltecem o racismo, a xenofobia, transfobia, homofobia, machismo, sexismo e os outros restantes. Os “anarquistas” sabem que o mundo é de e para todos, independentemente de tudo. Os “anarquistas” são os que não sentem qualquer tipo de dor proveniente da discriminação, mas, mesmo assim, apoiam os que mais sofrem. Os “anarquistas” são os que lutam em nome de tudo. No fundo, são mesmo os bons da fita enquanto que, todos aqueles que se opõem a qualquer tentativa de libertação, são os maus da fita e, incansavelmente, fazem com os outros sejam os conflituosos e injustos. A música de Beatriz Lebre continuará, sim, sempre a tocar. Os pedidos de George Floyd serão atendidos. O fascismo nunca mais renascerá das trevas de onde veio. Somos anarquistas com orgulho. Que venham daí mais anarquistas. Jamais serei uma “não-anarquista”.

Mãe, Pai, chamaram-me anarquista, e posso dar-vos toda a certeza do mundo de que nunca me senti tão feliz como agora. Sei que estou a ajudar quem mais precisa. Estou a usar o meu privilégio. Estou a usar as vantagens e todos os poderes que alguns não têm para desconstruir certas problemáticas. Sou anarquista, e sempre o serei para defender todas as Beatriz Lebre, todos os George Floyd e aqueles que acarinham e cuidam da sua liberdade, querendo levá-la consigo para todo o lado, e para todo o sempre. Para sempre anarquista.