10 Fevereiro 2019      07:21

Está aqui

Chico Buarque e Milton Nascimento

Cálice

 

“Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça”

 

35 Anos depois…

Aconteceu e era / é dever das gerações que o viveram ensinar às subsequentes o quanto teve de horrendo, tanto que, enfim, aquelas o consideraram, a certo ponto, irrepetível. Descansaram e desviaram o olhar, distraíram-se. As gerações subsequentes já não sabem do que se está a falar quando se fala de uma ditadura… Em tempos, noutro tempo, que importa? Falta de consciência histórica, e desta forma fecha-se o ciclo, mais não podemos do que encolher os ombros. Um dia destes ouvi dizer que Chico Buarque foi ofendido em plena rua por um grupo de jovens devido às suas posições políticas. Pende demasiado para um lado, imagine-se! Um lado que absorveu todos os poderes do Estado, mas não conseguiu evitar que o seu líder fosse preso. Um império assombrado, não forçosamente assombroso. Pois é Chico, pois é Milton, vão mesmo ter de se virar, como se diz por aí.

Repetição?! Estamos mesmo perante uma repetição? Quem somos nós, afinal, para insinuar tal coisa, lá do alto de um qualquer pedestal ético que mais ninguém compreende nem, pelos vistos, considera? São só palavras, e os homens são julgados pelas suas acções, dizem eles (porque há um nós e um eles, temos de o assumir de uma vez por todas). Mas como julgar um homem sem feitos numa campanha eleitoral senão pelas suas palavras, replicamos para nós próprios, suficientemente lúcidos, ainda que num estado de lamentável perplexidade. E talvez não tenha sido assim tão mau, só assim-assim, dizem eles, ainda que uma boa parte meio-envergonhados. Atenção que os outros, os que ontem perderam, e esses não são necessariamente parte do nós, também têm culpas no cartório, dizem os neutros (também eles num patamar superior, onde a moral se intersecta com a lógica da moral). Claro que têm, quem não as tem. Mas, sejamos claros, nada pode justificar o crime contra si mesmos (e contra a humanidade) a que ontem assistimos por parte dos brasileiros. Dois anos depois do outro, o acto sem nome, não, o improferível/inexprimível.

E ver a dona-de-casa a estabelecer uma equivalência moral onde ela não existe, nem por sombras… Só na cabeça de um cobarde ou de um louco.

Ah, e não podemos lutar contra eles nos seus termos, que isso só lhes dá mais força. Os seus apoiantes estão fartos de conversa fiada e querem ouvir coisas simples; contudo, quando lhes respondemos na mesma moeda, em termos igualmente simples, mas contrários, só fazemos o seu jogo e os empurramos ainda mais para o canto onde só estão os seus. O que dizer, então? Propostas claras, dentro do bom senso, não oferecendo o que não se pode dar – Meus amigos, propomos para os próximos quatro anos um crescimento económico de 3% / ano, através da injecção na economia de capital que provém necessariamente de uma diminuição da despesa, pois, como sabem, não há dinheiro nos cofres do Estado e os juros da dívida estão demasiado altos. Já para não falar que a dita dívida se encontra em máximos históricos. Enfim, tenham paciência, meus amigos, se o capital a resultar do aumento de impostos não for suficiente, teremos de cortar nas prestações sociais. Ainda assim, nada temam, que o futuro da nação é radioso! É isto? Mas disto já eles tiveram e não querem mais, querem coisas simples, cada vez mais simples, poucos caracteres, uma mão no ombro e alguém que lhes fale ao coração, palavras cada vez mais simples, não mais do que uma ou duas ideias imediatas para não criar confusão. Ideias essas que já apreenderam. Como as substituir por outras? – O espírito crítico não se coaduna com uma ou duas ideias simples, mas com a hipótese de escolha de entre uma multitude, assenta num grau mínimo de complexidade. Também já lá não vamos com amanhãs que cantam, mas não se verificou qualquer evolução, pois o que parece apaixonar as hordas é o carácter messiânico das personagens de poder. O efeito religioso, talvez o maior inimigo do espírito crítico, preserva, inalteráveis, os seus traços no coração do homem comum.

Ou seja, acredita-se que só querem / compreendem uma ou duas ideias simples, e apenas os podemos contraditar de um modo que nos tornará de imediato repulsivos aos seus olhos. Corolário: estamos perdidos. Assim seja, então.

O que nos espera na nossa velhice? Vê-los festejar como se nada se passasse, em silêncio, com a máscara da serenidade estampada, mas de coração partido? Sim. Também assustados, pois, então, já não faremos parte; com sorte apenas tolerados – desde que calados.

Restam as lágrimas, já que gritar não serve para nada.

 

Imagem de youtube.com

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