26 Julho 2023      11:14

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Arábia Saudita, “A Branqueadora Implacável”

Não foi assim há tanto tempo que Ricardo Araújo Pereira escreveu no Expresso, num artigo intitulado “Isto é uma vergon… golooo!”, publicado a 18 de Novembro, cuja leitura recomendo, onde escrevia que “se atrocidades forem cometidas com uma bola de futebol ao lado, ninguém leva a mal”.

O artigo debruçava-se sobre o facto de praticamente ninguém se estar a importar com a realização do mundial de futebol no Qatar, país que comete um vasto leque de atrocidades e de atropelos aos direitos humanos diariamente, em detrimento de poderem todos assistir à competição no conforto dos seus sofás do IKEA, sem que nenhum boicote ou percalço pudesse vir a acontecer em virtude de algum protesto internacional que decapitasse o desejado torneio. Todos fechámos os olhos para pudermos ver as nossas selecções em total paz com a nossa culpa pessoal.

Aparentemente, a saga continua, desta vez, com a Arábia Saudita, país que descobriu recentemente que o futebol existe e que têm todo o dinheiro do universo visível para comprar os jogadores que desejarem nas ligas a sério. E de todas as questões que pululam pelo argumentário dos ciclos noticiosos de 24h, aparentemente pouca gente faz a pergunta que deve ser feita. Toda a gente discute as questões de ética desportiva dos atletas, toda a gente discute se isto pode enfraquecer o futebol europeu, se os clubes europeus saem menorizados e a perder com este surgimento, se a Arábia Saudita vai ser uma potência futebolística ou se é só fogo de vista. Toda a gente se preocupa com as consequências desportivas, mas não se ouvem muitas vozes que façam a pergunta mais importante de todas as perguntas neste momento.

Essa pergunta é “porquê”? Porque raio está a Arábia Saudita a investir no futebol, num país sem cultura de futebol, sem grande interesse por futebol e que nunca teve uma selecção de futebol cujos resultados tenham alguma vez causado sensação.

Sportswhashing, é o vocábulo anglo-saxónico para definir a prática da utilização do desporto como veículo de limpeza de uma reputação danificada.

O novo líder, de facto, da Arábia Saudita, o príncipe Mohamad bin Salman, ao substituir o seu pai nas funções de governo – o Rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, diagnosticado com alzheimer e incapaz de governar – entendeu que a via tradicionalista e ultra-clerical que o país seguia até aí, iria atirar a nação saudita para a irrelevância no panorama geopolítico regional do médio oriente, o que, resultaria no perigo de submissão a um provável domínio do Irão na região, desequilibrando a balança de poderes e colocando os Sauditas numa posição perigosa face ao rival Xiita que se encontra do lado de lá do golfo pérsico. O Afeganistão taliban é um exemplo clássico de como o ultra-clericalismo, num país de parcos recursos, consegue condenar uma população inteira à pobreza abjecta, à miséria mental e à anulação psíquica.

Bin Salman entendeu, há muito, que o petróleo não é um negócio de futuro. Os indicadores demonstram que, a partir de 2050, o preço do petróleo já tenha deixado definitivamente de ser viável para que a Arábia Saudita continue a estar dependente desta matéria prima de forma tão significativa. O petróleo representa hoje, 46% do PIB do país, valor demasiado alto para uma potência geopolítica regional, são demasiados ovos no mesmo cesto, o que é, em si, uma fragilidade demasiado explícita.

Em segundo lugar, devemos notar que entre 2014 e 2020, para este país, os custos de extracção e produção de petróleo foram superiores aos preços médios de venda globais, ou seja, nesse período, o petróleo deu prejuízo, só retornando aos lucros no período pandémico, e só se mantendo nesses mesmos lucros, devido à invasão da Ucrânia, sendo do interesse Saudita que o conflito dure o máximo de tempo possível, porque sem isso, os preços retornarão à tendência pré-pandemia, pois, a preponderância do petróleo nos mercados energéticos segue a natural descida gradual, em consequência das questões climáticas e restantes efeitos da poluição carbónica.

Em terceiro lugar, a Arábia Saudita tem um problema de desenvolvimento económico interno para resolver, sendo que 65% da população tem menos de 30 anos, e 63% desses jovens estão desempregados, sendo grande parte deles, jovens qualificados que, ou desperdiçarão as suas capacidades, ou tentarão abandonar o país para que as possam utilizar em proveito próprio. Num país com uma economia tão focada no petróleo, não restam muitos sectores desenvolvidos onde estes jovens possam fazer florescer as suas carreiras e aplicar os seus conhecimentos.

Por último, a Arábia Saudita é uma potência geopolítica regional no quadro do médio oriente, e não pretende deixar de sê-lo. Perder poder significa perder terreno no que diz respeito à sua rivalidade geopolítica com o Irão, que é, não só um adversário geográfico e político, como é também um adversário religioso no secular conflito teológico entre Sunitas e Xiitas. Os sauditas pretendem continuar a ter uma forte capacidade de acção externa nos múltiplos conflitos armados que irrompem à sua volta, os quais constantemente financiam diversas facções desses mesmos conflitos com recursos de guerra, nomeadamente dinheiro e armas. Ora, uma Arábia enfraquecida, nunca terá este nível de capacidades, e perderá sempre contra as facções financiadas pelo rival Irão nos países que os circundam, colocando assim, a própria soberania nacional em risco.

Neste sentido era urgente, para bin Salman, pôr em marcha um rápido e gigantesco plano de diversificação da actividade económica, para livrar a economia da excessiva dependência do petróleo, aliando isso a uma captação massiva de investimento directo estrangeiro, de modo a que o país consiga manter os seus níveis económicos de vida confortáveis.

E é precisamente aqui, na captação de investimento directo estrangeiro, que entram o futebol, a formula 1, o golf, etc. Para que um investidor estrangeiro invista num país sanguinário e de hábitos exóticos como decapitar opositores, é preciso que este confie que o seu investimento vai valer a pena, e que não vai parar às mãos de uma milícia do Iémen financiada por sauditas que bombardeiam autocarros cheios de crianças. Ora, isso não é muito apelativo para um investidor ocidental, podendo ir parar a uma lista negra de “adverse news” ou de financiadores de organizações terroristas, e que os bancos do seu país lhe fechem as portas e o impeçam de aceder a crédito e às contas, condenando a empresa à ruína. Nenhum banco tem interesse em ter um cliente deste género na sua carteira e arriscar-se a pagar multas na ordem dos milhares de milhões de dólares, sem falar do prejuízo reputacional.

Ao comprar as estrelas mais mediáticas do futebol, ao organizar glamourosos grandes prémios de formula 1, ou torneios internacionais de golf, os Sauditas pretendem passar a mensagem de que é seguro e apelativo investir ali e fazer turismo ali, de que a Arábia Saudita é o novo hotspot do petro-mundo e de que Riade é o novo Dubai, nada mais que uma manobra de marketing para camuflar aquilo que aquele país realmente esconde.

Esconde que existe uma população muito jovem com ânsia de demonstrar o seu valor num país onde não há emprego, e num país que reprime a sua ânsia por mais tolerância e por mais abertura, que uma elite religiosa ultra-clerical e conservadora tenta reprimir utilizando o Estado para oprimir, prender, torturar e decapitar quem se lhes oponha, elite essa, também descontente com a nova linha económico-modernista do novo líder, tornando a Arábia Saudita num país onde a modernidade e a tradição estão de fileiras cerradas e em total rota de colisão e à beira do tumulto social, o que deixa o Estado numa pilha de nervos e a intensificar a vigilância sobre os subditos através da Comissão para a Protecção da Virtude e Prevenção do Vício, nome delicado da polícia político-religiosa, porque morre de medo de que possa desencadear-se ali, uma nova onda da primavera árabe, tendo todo o interesse em atrair ainda mais mediatismo desportivo para a nação, de modo a manter as populações entretidas com esta política de “panem et circenses”.

Esconde um país onde ser jornalista e procurar a verdade significa viver escondido por entre ruas e travessas e correr constante perigo de vida, tal qual Jamal Khashoggi, raptado nas ruas de Istambul, levado para o consulado saudita, assassinado e cortado aos pedaços para fazer sumir facilmente o corpo.

Esconde um país onde é comum circular na rua e assistir à decapitação pública de opositores e demais subditos que ousaram expressar uma simples opinião.

Esconde um país cuja polícia politico-religiosa espanca uma mulher grávida por ter os tornozelos à vista.

Esconde um país onde ser homossexual é crime e dá pena de morte.

Esconde um país que se recusou a receber refugiados sírios e iraquianos, com os quais partilham religião e língua, tendo nós, os europeus, feito o maior esforço de acolhimento juntamente com a Turquia.

Esconde um país que financia com dinheiro e armas, por via de multi-milionários privados encantados por pastores whahabistas e com a cumplicidade do Estado, organizações terroristas como Daesh, Al-Qaeda e Al-Nusra, cujas acções nós, europeus, pagámos com sangue nos atentados de Paris, Nice, Londres ou Madrid, que os moçambicanos pagam com sangue em Cabo Delgado e que os americanos pagaram com sangue no ataque às torres gémeas e na maratona de Boston.

Esconde sobretudo um país que tenta branquear todo este rasto de barbárie, de crime e de sangue através da cegueira futebolística, para que todos ignoremos que nem idiotas tudo o que isto significa. Para que todos ouçamos os vários idiotas úteis deste regime de sangue, como o herói nacional mor do portuguesinho, que assim que coloca um pé na Arábia com milhões de notas ensanguentadas nas mãos vem dizer à populaça que encontrou um país muito avançado que tem futebol feminino e tudo. Ou Luis Castro, que se indignou com um jornalista no Brasil, proferindo, em tom de fúria, que não é hipócrita, que como pai tem que assegurar o futuro dos seus filhos. Isto dito por pessoas do futebol de alta competição! Pessoas que espirram e sai uma nota de quinhentos euros, e têm o despautério de dizer estas coisas para que, em Portugal, pessoas que a meio do mês já têm a conta a zero, leiam isto nos jornais e lhes batam palmas. Ser hipócrita é isto. É desculpabilizar o facto de ser uma marioneta de um regime assassino a troco de dinheiro sujo de sangue. O Ronaldo está-se nas tintas para o futebol feminino e para as mulheres grávidas que são espancadas na rua por terem um tornozelo de fora, ele apenas quer mais uns milhões para poder comprar um iate maior, ou um segundo iate para ter estacionado em Monte Carlo e passar férias em Ibiza, é esse o nível de hipocrisia ou de ignorância dos quais estamos a falar. Tal como os filhos do Luis Castro, que já iriam ter uma boa vida, mas agora vão ter uma boa vida com um Ferrari ou um Lamborghini para cada um com férias nas Maldivas ou em Las Vegas.

Hipocrisia é passar uma carreira a jogar na Europa, e perante todas as tragédias comoventes mostrar uma t-shirt com uma mensagem de apoio às vítimas de um atentado – qual imperador romano que verte uma lágrima para uma garrafinha em sinal de respeito por uma tragédia sem levantar o traseiro do trono – para anos mais tarde estar a promover os maiores financiadores indirectos dessas atrocidades a aceitar milhões sujos que foram responsáveis por matar as pessoas que, anos antes, tiveram direito a uma mensagem hipócrita numa t-shirt branca.

Porque no quentinho da Europa, somos todos muito humanistas, mas fora do quentinho, onde o activismo é realmente necessário e pago com prisão, tortura e morte, ninguém destes corajosos activistas de t-shirt está interessado em fazer história, os milhões ajudam a conter as pulsões humanistas, se é que elas alguma vez existiram.

Isso sim, é uma vergon… golooo!