14 Maio 2024      16:46

Está aqui

A mãe

Se me dissessem que na passada 5ª feira, dia 25 de Abril, estiveram perto de meio milhão de pessoas na Avenida da Liberdade, eu teria concordado. Foi impressionante o mar de gente que se deslocou para a avenida, lisboetas e forasteiros, nunca na minha vida tinha testemunhado tamanha manifestação, e várias personalidades afirmam que foi maior que a manifestação da “geração à rasca” de Março de 2011.

A massa humana estendia-se ininterruptamente desde os Restauradores até ao Marquês de tal forma que o desfile em si só começaria mais de 2h depois da hora prevista devido às comitivas não conseguirem sequer começar a descer. Mas porquê? Porquê tanta gente na rua num momento onde o país está financeiramente estável e longe da situação de aperto vivida em 2011? Pode dizer-se que há inúmeros problemas para resolver com o SNS, os professores ou a habitação, mas esses problemas já existiam no ano passado e embora a manifestação de 2023 tivesse sido muito participada não se pode comparar com a colossal afluência dos portugueses à rua na 5ª feira. Resumir tal bloco humano a motivos como o estado do SNS, escola ou habitação é auscultar apenas a espuma das ondas.

Esta assombrosa massa popular não é uma casualidade, é um sintoma. Hoje há algo diferente do que havia há um ano atrás. Há um governo novo, eleito no rescaldo daquilo a que se assemelha a um golpe institucional levado a cabo pelo Ministério Público, que mina a credibilidade e a solidez das instituições democráticas e as coloca em perigo. Há um governo antigo que nenhum esforço fez por impor um mínimo de decência e ética doutrinária a vários dos seus integrantes, levando a escândalos recorrentes de incompetência profissional, incompetência política, défice ético e, em várias ocasiões, uma deplorável falta de sentido de Estado e pior que tudo, falta de humildade, situação que se intensificou no último ano. E por fim, há cinquenta deputados de um partido que pretende fechar as portas a este regime e reerguer um novo, mais policial, mais autoritário, e menos livre.

A democracia é filha da rua, foi a rua que se encheu de gente naquele dia em 1974 e deu aos militares revoltosos o respaldo vital para a vitória e para que o antigo regime se amedrontasse e não soubesse resistir perante aquele escudo humano, foi a rua que se encheu após a revolução para clamar por direitos, pela descolonização e por uma democracia liberal, fora das garras da extrema esquerda e da extrema direita, a rua esteve sempre lá como uma mãe que ampara a filha que se aventurava nos seus primeiros passos de pé. E é como mãe que a rua entende quando a sua democracia se desvia dos caminhos da sensatez e da prudência.

Esta massa popular sem precedentes nas últimas décadas é, na sua mais profunda essência, uma lista de recados de uma mãe preocupada com o rumo de uma filha.

É um recado ao novo governo, para que este adopte um sentido de responsabilidade acrescido para com a frágil situação do sistema democrático, e se desvie dos vícios do anterior executivo, a bem da imagem e da seriedade do regime democrático perante os seus cidadãos

É um recado ao PS, enquanto primeiro partido da oposição, para que leve a cabo a reflexão moral que não levou no pós Sócrates, e que o faça com seriedade no pós Costa, a frágil situação parlamentar nacional é, em grande medida, culpa da displicência, arrogância e falta de seriedade moral no exercício da governação dos últimos 8 anos.

É um recado a um Presidente da República que não sabe manter o silêncio quando este é fundamentalmente necessário, e coloca em risco a credibilidade da mais alta instituição da República.

É um recado ao conjunto das instituições democráticas, governo, parlamento, presidência e justiça, para que, em conjunto, sejam um foco de estabilidade do regime, e não um foco de enfraquecimento deste.

E é um recado a um partido que abandona o hemiciclo enquanto este canta “Grândola Vila Morena” em plena celebração do 25 de Abril, mostrando exatamente de que lado das trincheiras se encontra entre democracia e totalitarismo. Um recado que a rua, enquanto mãe da democracia, envia com voz grossa a quem a deseja usar e deitar fora dizendo em multidão “a minha filha caminhará comigo atrás até ao meu último sopro, por mim terão de passar pela força do sangue e das armas”.

A massa popular foi cristalina, “tratem da democracia, ou eu trato de vocês”.