19 Dezembro 2015      19:04

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ANIMAIS VERSUS BESTAS

"INCONSTÂNCIAS"

Arriscando-me hoje, e mais uma vez, a ser vexada e vaiada sem fundamento lógico ou argumento comprovativo venho falar-lhe daquele tema actual que muitos mistificam de lobby, extremismo ou hierarquização errónea de importância social (faltando-lhes os dados que o comprovam como sendo mais que frustração humana): os direitos dos animais e como estes são desrespeitados na prática violenta que é a tourada. Talvez este seja o momento em que deva parar de ler se não se quiser sentir enrubescer ou enraivecer – ou talvez deva ser o momento de seguir lendo com mais afinco ainda para bem da evolução e da consciencialização social.

Pensando que factos comprovativos do horrífico espectáculo que ocorre dentro da arena não estão em falta comprovo cada vez mais que esta dita tradição é tão obsoleta e ultrapassada em necessidade e fundamento quanto a caça às bruxas, o sacrifício humano para agradar aos deuses e os casamentos arrumados pelos pais dos noivos. – Não só pela sua índole violenta mas muito e também porque é uma fraca metáfora do espectáculo que, desconfio, só os indivíduos com uma parcela de característica psicótica poderão deveras aprovar.

Numa sociedade que se diz desenvolvida e em que existem documentos que afirmam o direito dos animais bem como estudos veterinários aos milhares que os depreendem como seres sencientes que poderemos dizer da instituição de uma actividade que era devidamente apreciada na era medieval, a também chamada era das trevas? É real que a tourada nasceu ainda a.C., nomeadamente no século III, em que utilizavam o combate corpo a corpo com o animal para provar ser dignos do casamento antes do mesmo e se estendeu até á era medieval, por volta do século V, quando esta actividade tomou contornos de ser um exercício de coragem e destreza. Quando observamos estes factos e a similaridade de ideais medievais com os utilizados actualmente para defender touradas e toureiros só podemos aferir duas elações: ou a nossa sociedade está intrinsecamente doente ao ponto de regredir séculos e séculos de história e esforços humanos ou o ser humano é fracassado e cobarde o suficiente para se esconder atrás de glórias que não são mais que um combate forjado em termos de igualdade.

Sim de igualdade digo, pois que muitos são aqueles que observam o que se passa em praça mas poucos são aqueles que sabem dos processos que antes e por trás desta imagética do herói têm lugar – se destes tivessem consciência talvez que mais depressa julgassem o touro por herói que o homem que o afronta. Desde uma raça pouco definida que tem por base a bravura, característica psicológica, e a definição desta seja medida por aquilo a que se chamam “tentas”, o touro bravo não é mais do que um touro normal que foi desafiado e molestado até ao ponto de se tornar revoltado e bravio. Esse mesmo touro que, em contexto natural, é um animal dito cobarde e ataca apenas quando se sente ameaçado activando assim o mecanismo de defesa (comum a todos os animais racionais e irracionais), que detém uma capacidade de memória sobejamente reconhecida e que revela a capacidade de simpatia, antipatia e empatia. – Já não são novidade para os mais atentos os relatos de touros que poupam os seus adversários em praça quando estes têm um problema ou que se deixam acariciar por pessoas em que confiam ou que os tratam com dignidade que têm surgido. – Se a capacidade crítica nos acompanhar é então óbvio que a bravura do touro é conseguida através de uma situação que, se não propositada, não o transformaria tão veementemente: o espicaçar do animal. Que argumento poderá então salvaguardar o tão proclamado “amor ao animal”? 

Nas minhas muitas discussões acerca do tema é recorrente falarem-me da vida agradável que o animal leva antes de entrar na arena – naquele jeito de justificação a que apenas nos apraz retorquir: desde quando os meios justificam os fins? – falando desta com um tom romântico extremo e deixando de lado os processos que o animal tem de enfrentar antes de entrar em praça: o embolamento, em que os chifres do mesmo são serrados a sangue frio entre dois a quatro centímetros e local onde existem terminações nervosas, processo que vai afectar a noção de distância e espaço do animal; o transporte muitas vezes realizado num espaço exíguo e onde o animal se ressente por ter sido retirado do espaço amplo a que está habituado e outros aos quais, estando permitidos ou não, se faz vista grossa como por exemplo a indução de drogas que foi verificada em 2002 e da qual existe notícia se for o caso de duvida.

Caro leitor, se isto não é suficiente para que o seu peito se retraia já de empatia é possível que poucas coisas o façam e você tenha deixado as características que o distanciam do estatuto de besta algures perdidas sem se aperceber – Porque o ânimo, a fúria e o ego funcionam sempre mais automaticamente, mais ainda que o amor distorcido que é proclamado pelo touro.

Quando há provas de que o animal entra em praça já debilitado, em grande parte também pelo stress sentido, pouca será a credibilidade da coragem dos que contra ele investem. Uma coragem que necessita ser salvaguardada por acções selváticas, uma coragem que abusa da inocência e da confusão do que lhe é inferior, uma coragem que defronta um oponente já lesionado poderá ser chamada de coragem? – Não. A única coragem que conheço e que é motivo de glórias é a coragem de ser pequeno e humilde e não a coragem de ser inútil e artificialmente valente. De violência o mundo está já servido; a coragem actualmente são os gestos de amor.

O que me parece mais interessante ainda, para não dizer ridículo (pois ridículo é um termo demasiado forte para aqueles que não conseguem distinguir entre questões pessoais e sociais), é que essa violência e essa soberba frágil sai da praça e entra muito facilmente na vida. Tem, entre outras, a forma de respostas apetrechadas de ofensas gratuitas, de uma zombaria digna da futilidade já antes demonstrada e de uma percepção e consciência da vida e de si mesmo desfasada da realidade – resumindo, aparece em forma de indivíduos mimados que matam quase para que a sua certeza absoluta, a sua verdade universal de que estão infimamente correctos não se esvaia tanto das suas mãos quanto das opiniões alheias. – Opiniões essas que, muito pessoalmente, penso serem o grande obstáculo ao crescimento interior.

Dito isto, caro leitor, deve entender que pouco me importam as questões monetárias na medida em que as alternativas para essas são imensas e na medida em que mais é aquele que sai de onde é realmente necessário do que aquele que realmente entra. – Basta-nos saber que em 2011 a IFAP atribuiu subsídios no valor de nove mil euros a famílias que fazem criação de toiros quando o nosso país tem graves faltas ao nível de educação, saúde, segurança e subsistência de várias famílias. Possamos nós imaginar quantas famílias poderiam ser ajudadas com nove mil euros e percebemos de imediato a gravidade da situação; poucas são as mais-valias da tourada.

Pouca é também a credibilidade e a capacidade de pais que procuram a melhor educação para os seus filhos, desafiando até professores se necessário, levem as criancinhas, por vezes até os bebes, e os deixem absorver todo aquele cenário regado a vermelho dos quatro litros de sangue que é estimado que o animal perca em praça. Essas crianças que aprendem desde logo as regras de etiqueta crescem com a carência de uma regra muito importante: o respeito ao próximo. Próximo, como dito na Bíblia. Não próximo humano, mas próximo! Entenda-se por isso, e de uma vez, que neste próximo entram os animais que dividem connosco a vivência neste planeta. Entenda-se também o quão teatral é o tão tradicional sinal da cruz antes de entrar em praça – Confesso que a minha opinião de Deus já não é a mais provável, mas penso que ele não será tão falível ao ponto de proteger aqueles que, de uma assentada, desrespeitam logo dois mandamentos: “Ama o próximo como a ti mesmo” e “Não matarás”. Se isso não chegar aproveite e leia a carta encíclica “Laudato Si” onde o Papa Francisco fala acerca do sofrimento dos animais e onde poderá encontrar, entre outras, esta citação: “O poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas.” – Não, nem o facto de acreditarem no todo misericordioso ressalva a sua falta de misericórdia e a falta de consciência.

Caro leitor, compreenda, não pretendo falar para aqueles que já tomaram a sua decisão mas sim para aqueles que ainda não a tomaram, para aqueles que precisam de a tomar pois não fazer parte da solução é, invariavelmente, fazer parte do problema; e não, não descuro o amor ao animal racional pelo irracional, apenas sei que um tem a sua própria voz e o outro precisa de alguém que por si fale. De alguém que por si lute, de alguém que por si saiba relembrar que ainda existe uma diferença entre ser animal e ser besta: ser animal passa por ser um ser “que vive e tem sensibilidade e movimento próprio” ao passo que uma besta é apenas uma “pessoa bruta, ignorante” (do dicionário de português). 

 

Imagem daqui