16 Outubro 2019      14:45

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Setecentos mil eleitores não têm quem os represente

Foram quatro milhões e novecentos mil os portugueses com votos válidos nas últimas legislativas. Destes, setecentos mil não contribuíram para eleger nenhum deputado. A culpa não foi deles, que se disponibilizaram para ir às urnas escolher os seus representantes, nem foi dos candidatos, cujas propostas conseguiram captar o seu interesse e aprovação. Foi mesmo da lei eleitoral que temos, que faz corresponder os círculos eleitorais aos distritos administrativos de 1835.

O Artigo 149º da Constituição exige a “representação proporcional” na conversão dos votos em número de mandatos. Ora, uma análise rápida mostra-nos que esta exigência da Constituição não é cumprida na atual lei eleitoral. PS e PSD juntos tiveram 67% dos votos válidos e elegeram 81% dos deputados. Os restantes partidos, com 33% dos votos, elegeram apenas 19% dos deputados. Mesmo considerando a aplicação do método D’Hondt, também prevista na Constituição, a semelhança entre a distribuição dos assentos parlamentares e a vontade expressa pelos portugueses nas urnas é ténue.

Se pensarmos na influência que este bipartidarismo artificial tem na decisão de voto dos eleitores, percebemos que a real desproporcionalidade está ainda mascarada pelos eleitores que, conscientes que apenas um de dois votos contará para eleger deputado, alteram a sua intenção de voto para o “mal menor”. São 11 os círculos eleitorais que apenas elegeram os dois partidos mais votados: Açores, Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Madeira, Portalegre, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu. É uma brutal falta de respeito pelos eleitores de mais de metade dos círculos do país, a quem é dito que podem votar em quem quiserem, mas só elegem deputado se votarem em um de dois.

Nestas legislativas, foram 24 as cadeiras que ficaram mal atribuídas à luz da Constituição, entregues ao PS e ao PSD, quando deveriam ter pertencido aos pequenos e médios partidos. Três partidos ficaram mesmo excluídos de entrar no parlamento, vítimas desta distribuição desproporcional.

Poderíamos pensar que a alteração dos círculos eleitorais implicaria alteração da Constituição, o que justificaria a demora em resolver este grave problema de representatividade da nossa Assembleia, mas de facto assim não é. A Constituição não determina como devem ser constituídos os círculos. A justificação está na circularidade do problema: a solução terá sempre de passar por um dos dois principais beneficiários do mesmo, PS e PSD.

Compreende-se o silêncio da Comissão Nacional de Eleições e do Tribunal Constitucional? De maneira nenhuma. Compreende-se o silêncio dos eleitores prejudicados? Menos ainda.

Uma luz de esperança surge da proposta de alteração legislativa entregue pela SEDES e pela APDQ na Assembleia da República em janeiro deste ano, e que esperamos seja discutida em breve.