30 Janeiro 2020      12:16

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Em democracia, ninguém está acima da lei

Quase um milhão de documentos entregues a uma plataforma que protege denunciantes de corrupção em África precipitaram a queda do império da mulher que espoliou um país inteiro para construir uma fortuna pessoal, apoiada nas costas do pai ditador, alavancada numa empresa pública do seu país, e amavelmente recebida por um país europeu conivente e cúmplice.

Depois de um jovem informático de Gaia ter permitido que ficássemos a conhecer lucros indevidos e negócios usurários envolvendo os três maiores clubes de futebol de Portugal, que o Estado espanhol recuperasse vinte milhões de euros de dois dos maiores jogadores e treinadores de futebol do mundo, que o Estado português recuperasse nove milhões de euros dos sócios portugueses de uma das maiores consultoras do mundo, precisávamos mesmo do Luanda Leaks para que o passássemos a considerar como um herói nacional? Para criarmos ferramentas jurídicas que relativizem o “acesso ilegítimo”, o “acesso indevido”, a “violação de correspondência”, a “sabotagem informática”, quando estão em causa alguns dos maiores crimes financeiros do mundo?

Neste momento, é importante esclarecer e registar quem está de que lado. O que têm em comum a Procuradoria-Geral da República, a Ordem dos Advogados, a Federação Portuguesa de Fútebol, a sociedade de advogados PLMJ, e o Sporting? Todos anuíram em tribunal que o denunciante português é apenas um hacker!

A justiça portuguesa voltará a ser enxovalhada internacionalmente se os portugueses que geriram os 115 milhões desviados de cofres da Sonangol através de uma sociedade no Dubai forem condenados pela justiça angolana, e em simultâneo o português que os denunciou continuar preso em Portugal.

Isto no país dos megaprocessos que se arrastam por décadas sem resultados. No país em que as operações Marquês, Monte Branco, Furacão, Portucale, Face Oculta, Labirinto, Remédio Santo e Apito Dourado produziram mais anedotas do que condenados. No país que permite que, de recurso em recurso, os criminosos se continuem a rir da justiça, do Estado de direito, e, em última análise, de todos os portugueses. No país que interpreta a lei de forma tão estrita e burocrática que acaba por esvaziá-la do seu sentido prático de condenação do crime.

Na semana em que ficámos a saber que o primeiro-ministro não terá de responder presencialmente às perguntas da justiça, podendo esconder-se sem vergonha atrás de uma folha de papel, é caso para dizermos que, em democracia, ninguém está acima da lei, exceto o primeiro ministro de Portugal, o ex-primeiro ministro de Portugal, o ex-vice-primeiro ministro de Portugal, a filha do ex-presidente de Angola, o ex-vice-presidente de Angola, o presidente do banco da filha do ex-presidente de Angola, o ex-presidente do BES, o ex-presidente do BPN…