24 Julho 2016      10:47

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DE ESTÔMAGO CHEIO II

"TEXTURAS"
A novela Coração, Cabeça e Estômago, como vimos na última crónica, corresponde a três fases distintas da vida de Silvestre da Silva. Na primeira, apaixona-se por sete mulheres assim que as vê, acabando sempre por ser rejeitado e até injuriado, o que fere a sua natureza sensível e exuberante, deixando-o abalado física e psicologicamente: “Recolhi-me com um catarral e estive onze dias de cama”1.
 
Depois, conhece Paula, a “Mulher que o Mundo Respeita”, que é tudo menos respeitável, todavia, sendo abastada, a sociedade desculpa-lhe os desaprumos, e é precisamente a antítese de Marcolina, pobre e honrada, mas condenada ao opróbrio. Deste modo, é patente a crítica visceral que ressalta em cada página e testemunha da impotência sentida pelo protagonista quando confrontado com a injustiça e a superficialidade do mundo “patarata”, onde a riqueza é sinónimo de probidade e a pobreza de ignobilidade, apesar do bom carácter, porquanto a “sociedade não tem obrigação de ser outra coisa, logo que é “elegante””.
 
Na segunda parte, Silvestre decide enveredar pelo jornalismo, escrevendo para o “Periódico dos Pobres” artigos “em grande parte copiados do Dicionário Político de Garnier-Pagès” e trocando galhardetes epistolares com o regedor da sua freguesia, mas a fraca qualidade da sua escrita vale-lhe os apupos dos leitores, que chegam a quotizar-se para comprar-lhe uma pena. Assim, não chega obviamente a conhecer o sucesso que almejava.
 
Também foi escrevendo folhetins, que tiveram algum êxito junto das donas de casa portuenses, mas o seu objectivo era mais ambicioso: chegar a ministro e, para tal, escreveu uma série de artigos que desencadearam ódios de estimação, pesadas multas e o encerramento do jornal. 
 
Nas “Páginas Mais sérias da [sua] Vida” considera seriamente a possibilidade de vir a enriquecer pelo casamento, mas, mais uma vez, sem sucesso. Provavelmente porque nem a cabeça nem o coração dominam verdadeiramente os mistérios do calculismo. 
 
Por fim, um dos seus artigos levanta contra si “celeumas de pessoas honestas”, levando-o a sentar-se no banco dos réus, a teimar e a confirmar a infâmia do Sr. Anselmo Sanches, chegando por isso a ser condenado a multa e a pena de prisão (convertida em dinheiro). E aí acaba definitivamente a vida intelectual de Silvestre.
 
Na terceira e última parte, conhece Tomásia, filha do sargento-mor de Soutelo, menina rica, corpulenta e pouco dada a intelectualismos. Casa, e consegue ascender socialmente, tornando-se Presidente da Câmara, roliço e apreciador dos prazeres da vida e do jogo, acabando inevitavelmente por endividar-se.
 
Prova da erudição do seu autor, esta novela humorística, oscila habilmente entre romantismo e realismo, revelando incipientes preocupações naturalistas, bem como se encontra fortemente vincada pela ambiguidade entre idealismo e materialismo. 
 
Tal obra, congeminada, estruturada e maturada, distancia-se consideravelmente das novelas dos folhetins, escritas por encomenda para sobreviver, e leva inelutavelmente o leitor a questionar-se sobre o sentido da vida e sobre a busca da felicidade.
 
A novela Coração Cabeça e Estômago é mais do que o relato do fiasco da existência de Silvestre, é um ensinamento (como ele próprio, no fim da vida o desejou), assim como retrata fielmente os costumes da sociedade da época, borrifados engenhosamente de sarcasmo e de humor fino, os derradeiros trunfos.
 
1 Castelo Branco, Camilo, Coração, Cabeça e Estômago, Publicações Europa-América, 1988, Lisboa.
 
 
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