2 Setembro 2023      16:08

Está aqui

Cantigas de fiar

Fiado só amanhã! Lia-se em quase todas as tabernas do Alentejo. Era um dizer corrente. A imagem desse azulejo leva-nos a tempos antigos, ao tempo das tascas. Ainda existem algumas hoje em dia mas são poucas as que vão sobrevivendo ao passar dos tempos.

Quem não se recorda dos bancos de madeira e das mesas pequeninas, sempre ocupadas pelas mesmas caras familiares.

Caras de pele enrugada e gasta do sol, cabelos grisalhos ou já completamente brancos, as camisas debotadas por causa do tempo e na cabeça ou a boina típica ou um chapéu também ele debotado do tempo, com leves toques de salmoura advindas da transpiração.

Na parede, outro dizer, vai entrando, vai saindo, vai pagando. Ao fundo, duas pipas de vinho carrascão, colheita do ano passado. Em frente a cada um dos clientes, um copo de vinho e um prato com torresmos, para o vinho não cair em jejum.

O dono, também já com a sua idade, geria a caixa das moedas, sem necessidade de recurso a calculadora ou a máquina registadora. E saem mais uns copos para a mesa do ti Xico. Na outra parede, a reprodução de um quadro de uma ceifeira, lembrando o mundo fora daquelas quatro paredes. Os torremos eram feitos pela mulher do dono da tasca, eram do rissol, os melhores. Os clientes tinham-nos como favoritos, a eles e à orelha de porco. Eram todos os petiscos especialidades da dona da casa. Era ela, claro, que administrava todo o negócio, embora o dono quisesse fazer passar a imagem de que ele tomava conta de tudo.

Os copos eram pequeninos e estavam já gastos de tanto lavados por tentar tirar os restos da cor tinta. Na parede outro dizer, a imagem de dois burros, dizendo um para o outro, quando será que nós os três nos encontramos outra vez.

E assim os dias iam passando. As conversas dentro daquelas paredes não mudavam muito. Era o Benfica, a ceifa, a chuva que não chegava e quando chegava estragava tudo, a filha dos morgados que estava prenhe e não se sabia quem era o pai, os porcos que tinham roubado ao Zé da Horta.

Nada de novo.

Assim se passavam os dias, até que os clientes fossem desaparecendo, até que os donos desaparecessem eles também. O único que permanecia era o leve cheiro típico das pipas de vinho.

Na parede outro azulejo: nesta casa só se fia a maiores de 90 anos quando devidamente acompanhados pelos pais.