24 Setembro 2016      10:02

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CAMPOS ALENTEJANOS

"PARALELO 39N"

Não há coisa mais bonita do que um campo doirado e roxo misturado no meio das árvores. É um tapete colorido como os de Arraiolos, tão perfeito e tão bem desenhado que é o segredo da sua construção. Não parece haver nele grande ciência escondida, mas há. Como parece não haver segredo na disposição das estrelas dos céus, desenhadas em perfeição e colocadas no sítio certo, o segredo que as junta foi descoberto há tantos e muitos anos quantos a civilização humana. Os homens souberam interpretar as estrelas e constelações todas numa só e conseguiram que elas os orientassem no exterior e no seu interior.

Tão glamorosos são estes campos até, repetindo frases já tão repetidas, a vista alcança e teimam em confundir os nossos olhos nas suas belezas, labirínticos segredos de roxo, amarelo, verde, vermelho. E, subitamente, uma papoila vermelha, uma abelha que poisa no coração da papoila branca daquela esteva e a outra que foge para o rosmaninho roxo. No meio de tudo, o silêncio do Sol, o murmurinho do vento e os meus ouvidos disponíveis para ouvir uns sons e imaginar os outros.

Sou arqueólogo. Arqueólogo de pensamentos e palavras, de imagens e pedras. Encontrei nas pedras dos campos alentejanos o testemunho das idades sem fim. Nas lascas do xisto o tempo infinito. Um castanho lúgubre que dá chão e agrega os pontos tão bem cozidos dos tapetes que são as flores e as plantas, que se confundem com as cores e os zumbidos das abelhas que, na sua lida diária, juntam ao pólen e levam aos cortiços que se erguem firmemente nas encostas baixas do campo plano. São as nossas estátuas da Páscoa atentas que, na cortiça que alberga o enxame, deixam também conhecer a idade das eras que passam, em filões iguais aos do xisto que, só com o olhar minucioso se conseguem perceber. São como a idade das estrelas, são como a idade das árvores.

Arqueólogo de ideias, de números, de dados. Tenho um bloco de desenho na mão, visto uma t-shirt branca publicitária de alguma coisa que não sei, acastanhada em sítios específicos da sua brancura, do pó que se instalou em mim e, até que o expulse por meio de água, não de diferencia. As pernas, cobertas a metade por calções cor da terra e do pó deixam a descoberto as pernas cabeludas cujos cabelos se enchem de pó e se protegem das feridas que os ramos antigos me infligiram. Em traços pincelados, a verniz das estevas que se acumulam não só nas pernas, mas também na t-shirt. As botas, prontas a calcorrear os trilhos já feitos e marcados pelas pegadas das ovelhas que, dia após dia, moldam as pinturas dos campos.

Na arqueologia dos sons ouço só os chocalhos das ovelhas, agora. Ouço ao longe o zumbido das abelhas que foi abafado e, por momentos escassos, o barulho de uma motorizada que mal aguenta o peso do pastor que regressa ao rebanho. Desenho o tapete a preto e branco sem emoções. Fotografo para tentar lembrar-me de cada pormenor, mas nem a fotografia que tiro pode captar, com qualquer filtro que use, a beleza imenso das árvores e das flores e dos campos e do céu e, em negativo, das estrelas.

Sou arqueólogo e penso nos campos como se os séculos não tivessem passado. Construo os caminhos romanos e as pedras de xisto alinhadas, revejo as lápides pré-romanas erguidas no sopé, cobertas agora pelos tapetes que se renova ano a ano.

São estes campos alentejanos. São estas as diversidades, tapetes de imaginação em permanente construção e renovação. O ar, o cheiro e o pólen são o oxigénio e o alimento, doce como o mel, que me ajudam a continuar e a tentar, todos os dias, aproximar o esboço do quadro perfeito, ainda que com a certeza de nunca o conseguir.

 

Imagem de http://www.meloteca.com/