8 Agosto 2023      13:44

Está aqui

O país do “anda tudo a gamar”

Rui Rio, ex-presidente do PSD

É de assumir como unânime que, em Portugal, quem não sair de uma taberna ou de um almoço familiar sem ter dito, pelo menos cinco vezes, que “os políticos são todos os mesmos”, que “andam todos a meter ao bolso”, que “andam todos a gozar com quem trabalha” (trocadilhos televisivos à parte), que “isto é tudo uma cambada de larápios” e que “anda tudo a gamar”, não se consegue sentir português a 100%.

Costuma dizer-se que a primeira palavra que uma criança italiana aprende a dizer, mal começa a falar, não é pai nem mãe, é “Ferrari”. A criança portuguesa, diz “gatunos”, dito já com a apropriada entoação de azedume.

Ora, é mais do que evidente que, em Portugal, existe este fenómeno social com um enraizamento que não se encontra noutras geografias, não faz parte da cultura anglo-saxónica desconfiar dos partidos desta maneira, essa desconfiança pode existir para com um ou outro indivíduo, mas não contra o espectro partidário como um todo. Existirão sempre descontentes com o sistema, mas não com a preponderância e vocalidade que se notam em Portugal, porém, é de notar um aumento do número de descontentes um pouco por todas as democracias ocidentais, muito devido aos níveis crescentes de polarização política.

Portugal desconfia endemicamente dos partidos políticos e dos indivíduos a eles ligados, isso é notório nas ruas, é notório nos ambientes familiares, é notório nos locais de trabalho, e é notório nos mais variados locais de ócio favoritos dos portugueses, e existe uma razão muito aparente para tal, cuja origem data dos finais do século XIX e inícios do século XX, e do respectivo ambiente político português vivido à data.

Os últimos anos da monarquia constitucional foram marcados por um constante estado de confronto partidário. Em 1885 as legislaturas passaram de uma duração de 4 anos para 3 anos, dizia-se que era para “amiudar a consulta ao país, dando assim mais autoridade e prestígio à Câmara dos Deputados”, porém, a percepção que esta decisão transparecia era a de querer mascarar as constantes quedas de governos e convocação de eleições antecipadas, que faziam com que raras fossem as legislaturas que chegassem ao final do mandato e, nessa lógica, uma legislatura mais curta teria maiores probabilidades de ser cumprida até ao fim. O resultado não foi o esperado, a partir daí as legislaturas continuaram a não durar até ao fim do mandato, como aliás, duravam cada vez menos, salvo uma ou outra excepção.

Nesse cenário de constante reviravolta política, governos que eram eleitos e caíam passado pouco tempo, constantes campanhas e eleições, e constante confronto eleitoral. O Rei D. Carlos, que alimentava o sonho de fazer pegar de estaca em Portugal um sistema parlamentar de dois partidos – o partido Regenerador e o partido Progressista – semelhante ao modelo anglo-saxónico, via-se cada vez mais interventivo na vida política portuguesa, quando a tendência das restantes monarquias constitucionais europeias era a de um afastamento gradual dos reis da vida política, circunstância esta que foi uma das grandes causadoras do seu assassinato em pleno Terreiro do Paço, nunca conseguindo fazer com que ambos os partidos se afirmassem a sós, tendo pelo meio a intromissão do partido Republicano e do partido Regenerador Liberal, que não permitiram firmar o modelo bipartidário anglo-saxónico. Dois anos volvidos da morte de D. Carlos, morre o Reino de Portugal, que não sobreviveu a tanta instabilidade e promiscuidade entre o rei e a actividade política.

Nascia, em 1910, a República Portuguesa, a segunda república mais antiga da Europa. Mudou o regime, mas não mudou o estado de volatilidade politico-partidária, em 16 anos, houve 8 presidentes da república e 45 governos. Um total caos. Caos esse, que em 1926 foi travado por uma revolução militar, a qual dá início ao Estado Novo. Entre essa data e 1933, o país atravessou um período de Estado de excepção, onde o regime estava ainda a auscultar com que linhas se haveria de cozer, e que tipo de regime definitivo haveria de ser implantado.

É precisamente nesses sete anos que se dá início a um processo de propaganda totalitária que visava surfar a onda de caos partidário gerado pelos últimos anos da monarquia e primeiros anos da república, de modo a desacreditar totalmente a democracia, o Estado de direito, o pluralismo e o parlamentarismo. Tal campanha de descrédito, foi tão bem sucedida, que, no início dos anos 30, na opinião pública portuguesa já não se debatia tendo em vista qual seria o melhor tipo de regime, democracia ou ditadura, debatia-se sim, que tipo de ditadura seria a melhor para vir a ser instaurada em Portugal.

Hoje em dia, salvo uma minoria de indivíduos, qualquer um de nós sente repulsa pela expressão “fascismo” e por qualquer uma das suas ideias de sociedade, porém, no início dos anos 30, o fascismo era uma ideologia defendida com tenacidade por uma larga massa populacional, e chamar ditador a alguém, não era propriamente ofensivo, podia ser até, bastante honroso. Isto só se altera uns anos mais à frente, quando o fascismo tenta tomar conta da Europa através da guerra, com tudo aquilo que o fascismo representou de negativo para a humanidade em matérias de atrocidades e genocídios, antes de tudo isto, o fascismo, não só, teve direito ao benefício da dúvida, como teve uma larga aceitação e apoio popular.

No Portugal dos finais dos anos 20 e início dos anos 30 o povo português estava saturado de mais de 60 anos de sucessivos governos efémeros, de constante estado de campanha eleitoral, de caos total na vida pública sem fim à vista, e com as condições de vida do país a agravarem-se constantemente, sem que nenhuma mudança política resultasse em alguma mudança positiva na vida dos cidadãos. Para o comum cidadão, o estado de crise só se agravava, e ninguém nas elites políticas demonstrava a capacidade de tomar as devidas decisões para que a situação se invertesse. Já se tinha tentado de tudo, governos conservadores, governos progressistas, matou-se um rei, derrubou-se um regime monárquico, instaurou-se uma república, elegeram-se múltiplos presidentes e múltiplos governos e nenhuma alternativa devolvia a almejada estabilidade e crescimento da economia nacional e das condições de vida.

É precisamente este alinhamento de circunstâncias que acaba por criar as condições perfeitas para uma campanha totalitária. Começam a disseminar-se narrativas que defendiam que a democracia parlamentar estava condenada, que não tinha já capacidade de tomar decisões, que era uma forma de regime obsoleta vinda de sociedades rurais do séc XIX, estratificada, elitista e cúmplice dos grandes interesses económicos, que pouco tinha a ver com a nova sociedade industrial caracterizada pela mobilidade social como era a do séc. XX, que transparecia indiferença face aos interesses populares e da nação, que se desperdiçava demasiado tempo com querelas partidárias, e que, por consequência, se tornava num regime completamente ineficiente para que fossem tomadas decisões, decisões essas, pelas quais, o povo desesperadamente ansiava, de modo a ver o estado de crise invertido de vez.

E foi, precisamente, o argumento da cumplicidade com os grandes interesses económicos, um dos que mais ressoou nesse tempo, de que a classe política estava intimamente ligada ao capital, e que desconsiderava constantemente as necessidades dos cidadãos, que as suas decisões eram constantemente corrompidas pelos grandes lóbis, e pior que isso tudo, o próprio sistema democrático não se soube defender desses argumentos. Tanto não soube, que se deixou cair diante do totalitarismo.

Essas narrativas acabaram por ser temporalmente transportadas através da propaganda ao longo de todo o Estado Novo, de que a democracia era uma rebaldaria, que criava demagogia, que criava charlatões e corruptos, que gerava constantes crises, que os partidos políticos eram instituições retrógradas e criminosas, que geravam desunião e discórdia no seio da nação, que atrasavam o progresso, e quem contrariasse estas narrativas, seria imediatamente detido, torturado e condenado a um longo cativeiro num calabouço em Cabo Verde ou em Peniche, como aliás, era apanágio das ditaduras. Onde não há vestígios de caos, não há vestígios de liberdade.

Tanto Salazar, como Marcelo Caetano eram produtos dessa geração que foi marcada pelo caos político da viragem do século, nasceram nesse caos, cresceram nesse caos, tornaram-se adultos nesse caos, e toda a sua existência havia sido marcada pela constante situação de instabilidade política, o que fez de ambos, acérrimos opositores à democracia e ao pluralismo, tendo defendido as suas convicções até à morte.

Este constante estado de descrédito da democracia e do pluralismo, nascido na viragem do século e transportado pelo Estado Novo até 1974, fez com que Portugal tivesse sido exposto a esta narrativa nociva durante várias gerações, o que gerou sequelas difíceis de curar na sociedade civil portuguesa, que hoje ainda se manifestam no mais profundo âmago da vida comum dos cidadãos e, conforme foi dito no início do texto, é notório nas ruas, é notório nos ambientes familiares, é notório nos locais de trabalho, e é notório nos mais variados locais de ócio. Em Portugal, ainda perdura esta forma de pensar relativamente à política, ainda que, a democracia esteja estabelecida e inquestionável há já quase 50 anos, e que os acontecimentos que motivaram esta mentalidade tenham tido início por volta de 1870, há mais de 150 anos.

Todavia, não é apenas nas tascas e nos almoços familiares que esta mentalidade está presente, para nossa infelicidade, está presente em todo o lado, seja na classe trabalhadora, seja nas elites, seja nas forças de segurança, seja na justiça. Em todas as instituições é possível observar pequenos comportamentos nocivos resultantes desta mentalidade e desta forma de estar.

É comum, por exemplo, ver a justiça portuguesa ver-se tomada por este “amok” justicialista. Peguemos no exemplo dos acontecimentos recentes que envolveram as buscas da PJ à casa de Rui Rio e à sede nacional do PSD, independentemente da justificação para as buscas, notemos que, tanto na casa de Rui Rio, como à porta da sede do PSD, antes sequer de chegarem as autoridades, já a comunicação social sabia que as buscas iam ser feitas, tendo alguns órgãos de comunicação chegado antes até que as autoridades. Alguém dentro do sistema quebrou o segredo de justiça, o que, diga-se, é o normal, em Portugal o segredo de justiça deveria chamar-se delação de justiça, porque o próprio sistema não o trata como um segredo.

Este modus operandi é das formas mais nocivas de intervir na vida pública, onde actores do sistema com privilégios especiais de autonomia utilizam os mesmos para acções de motivação política. A justiça começa a ver-se pervertertida quando esta confunde os seus poderes legais, fazendo exceder os seus poderes legítimos, provocando distorções muito pouco éticas na acção da justiça.

A constante violação do segredo de justiça visa unicamente utilizar a opinião pública para que esta faça um pré-julgamento – o dito julgamento de tabacaria – em que o cidadão vai ao quiosque, vê uma cara numa capa de um jornal com um título incriminatório e tece ali o seu julgamento com base no “se a polícia lá foi, é porque ele alguma coisa fez”, veredicto… “culpado”. Isto tudo antes do visado se poder sequer defender, e antes de ser levado sequer à barra de um tribunal, sem se saber se é, de facto, inocente ou culpado.

Esta vontade que a justiça tem, de agradar às massas ardentes do facebook e dos juízes de tasca é dos comportamentos mais nocivos e perigosos que se podem ter perante a democracia, e não é eficaz na luta contra a corrupção e abuso de poder, pelo contrário, é precisamente no meio desta barulheira mediática que se cria o ecossistema perfeito para qualquer esquema de corrupção. Quanto mais barulho e confusão em torno de casos mediáticos, mais a corrupção passa despercebida, porque enquanto as autoridades andam entretidas a tentar desenterrar um caso que sirva de “exemplo”, deixam escapar outros casos que deveriam ser urgentemente investigados. No final, nem o caso “exemplar” é considerado culpado, porque é inocente ou prescreve, nem os restantes crimes são desenterrados, o que cria ainda mais frustração e alarga as falanges insatisfeitas, terreno fértil para a disseminação de ideias anti-democráticas e populistas para aqueles partidos que nós bem sabemos, e para a sua sentença favorita: “Anda tudo a gamar.”

Esta pulsão imbecil de vingança popular subverte e desnorteia a justiça. Se julgamos que este tipo de modos servem para pôr as elites do crime na ordem, estamos todos a enganar-nos grandemente, isto serve tão somente apenas para que a violência exercida contra os desfavorecidos e os descamisados se torne cada vez mais despercebida, mas, acima de tudo, serve para intensificar ainda mais o descrédito popular nas instituições, que, pelos motivos acima descritos, é uma das maiores e mais profundas feridas históricas da sociedade civil portuguesa, a qual deve ser sarada através do exemplo e da eficiência do sistema, e sobretudo, da honra do mesmo, e não através da deturpação e da distorção da realidade, que não saram esta ferida, abrem-na.