28 Maio 2017      12:59

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NATURAL BORN KILLERS

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

NATURAL BORN KILLERS (1994) de Oliver Stone - [(Genes + Poder + Energia+Media+ Individualidade + Arbítrio + Sangue) / Hesitação]*∑ (Quase Tudo ∩ Quase Nada) = Um Pouco Menos do que Infinito (∞ -Φ)

Que saudades de um bom tumulto. Barulhento, muito barulhento, e sem vítimas ensanguentadas a lamentar. Obviamente, o dito anterior remete para o que ocorreu no lado de cá da luz do ecrã e do oceano. Houve algumas vítimas, claro, mas todas no lado de lá (esse lugar, real e imaginário por igual, onde não poucos de entre todos os estrondos que se ouvem vêm de carregadores de armas de fogo, deslizam por canos estreitos, longos ou cerrados, conforme o gosto de cada um, e tendem a alojar-se na carne tenra de alguns incautos a cruzarem a estrada errada no momento errado).Se um inglês desesperado facilmente trocaria o reino por um cavalo, um americano em idêntica condição culminaria num êxtase com uma carabina que pudesse apoiar na cintura, a reconquista do reino viria depois, através do cinema.

Por cá, como dito anteriormente, nada de sangue, apenas ruído. E, entretanto, passaram vinte anos. Pouco resta desses tempos, de grupos impreparados em lados opostos de uma barricada artificial criada no momento. De um lado Natural Born Killers; no outro, Pulp Fiction. Oliver Stone, o áspero paranóico, versus Quentin Tarantino, o messias cool. Com as particularidades de NBK ser baseado numa história original de Tarantino e de este então, como de resto ainda hoje, negar alguma vez ter visto o filme, tais as dores de estômago. Hiperactividade gástrica em quem menos seria de esperar.

As palavras amargas não se ficaram pela arqui-rivalidade –e afinal Tarantino era juiz em causa própria, sendo que da história original pouco restava no filme de Stone–, nem se perderam no tempo. Um exemplo relativamente recente: L.M. Oliveira no jornal Público, desorientador, nem por isso inesperado, refere-se a NBK como um filme que “continua horrível”, mas com “um sentido crítico premonitório, espécie de projecção de uma “selvajaria” por vir: como se dissesse “vejam, meus amigos, o mau gosto do futuro”; afinal, mesmo horrível durante 20 anos, parece ter, muito antes destes terem passado com a rapidez de um fogo-fátuo, atingido o seu objectivo. Ou então aqueles que se escandalizaram e escandalizam com um objecto que se estabelece como uma crítica última à violência -e afinal a celebra…

Artigo genuíno, opiniões sadias, tudo certo, (suspiro…), mas quem é o homem por trás do estrondo. Caso estranho e pouco visto em Hollywood, pois inclui uma curva pronunciada a meio do caminho. Vejamos: Combateu no Vietname, consumiu as substâncias devidas, quis ser famoso, escreveu argumentos de linha dura, bem aconchegados à direita, ganhou um Óscar nessa categoria com um dos filmes mais racistas que a memória guarda (Midnight Express, em 78), escreveu um dos filmes emblemáticos da era-Reagan (Scarface, 82), depois voltou, já como realizador, ao Vietname e sucedâneos pelo lado esquerdo de uma muito própria via-sacra (Platoon e Salvador, ambos de 86), tornando-se famoso e multipremiado, e também notório contestatário. 1986, é o seu annus mirabillis.O separar das águas. O que veio a seguir, enfim, é História… Isto diz-nos o suficiente sobre o homem? Não, na verdade, não!

Stone é um homem inevitavelmente só. As escolhas foram contrárias ao sentido dos tempos, e por isso não há movimento em que se possa apoiar.

[Por gozo, ou generosidade (mas isso seria crueldade desnecessária!), poderíamos inventar-lhe um, o Post-Hollywood(pergunta: mas já não existe? -resposta pronta: claro que não! Há muito tempo que não.), do qual Stone seria o único legítimo representante.]

Por outro lado, esse isolamento deu-lhe uma possibilidade imensa de libertação, que aproveitou como poucos. Não é um homem amargurado. Criador de palácios de sonhos e pesadelos (separemos por uma vez o que é de separar) válidos para uma América que, quer queiramos quer não, já reside em todos nós e que Stone regularmente mascara de verdade alternativa, confusão que tem tanto de inadmissível como de deliciosa. Uma máscara para a verdade pode ter esse efeito dúplice, tanto quanto uma verdade pode ser alternativa. Recordemos filmes como JFK (1991)ou o documentário The Untold History of USA(2012),filmes que nasceram para ser odiados, em rigor desesperam pelo ódio do público, com o propósito de assim se tornarem ineludíveis. Como uma comichão que primeiro fingimos não sentir e depois fingimos não nos incomodar. E também filmes imperdoáveis, por não serem, tal como o homem, sustentados na amargura. E ainda por cima falam-nos olhos nos olhos.

Homens sós, ou se afastam ou atiram. Stone escolheu atirar, contudo aparentemente sem se preocupar em ser certeiro. Os mecanismos de análise (de qualquer análise) insistem numa necessidade de “verdade”, bastas vezes eliminando o conceito imediatamente anterior, o de construção. Agir em conformidade é, entre outras coisas, o encolher de ombros para com a objectividade da procura desde que garantido o espírito dos tempos. Por outras palavras, perdoa-se a construção da verdade, perdoa-se o encolher de ombros, mas jamais se concede indulto a quem joga/ goza abertamente com a segurança da observação.

Oliver Stone, que sabe o que faz (não há como pensar de outra forma), como autor que se entrega, abertamente e com um sorriso nos lábios, ao sacrifício? Sim, também.

*       *       *

Natural Born Killers-Mickey & Mallory, pelos caminhos que já foram do velho Oeste, a matar indiscriminadamente. Matam porque não tiveram apoio familiar, matam pelos traumas que não conseguiram superar, matam pelas circunstâncias, matam para alimentar a lenda que à volta deles foi construída, enfim, diz também o título, matam por natureza. Outros, aqueles que os que os perseguem, que deles se alimentam, ou matam ou desejam matar. Outros ainda, os fãs, também comedores de almas, mas de tipo diferente, gostam que eles matem, pois assim também matam e não precisam de sujar as mãos. Too much TV!, pode ler-se a dado momento, uma das poucas ocasiões que se pretende (ou assim parece) de lucidez. Ocasião que, no entanto, também degenera em morte.

Stone dá-nos imagem sobre imagem, sobre imposição de tipos e géneros e velocidades em montagem vertical (modelo desse modo definido pelo próprio Stone, e que consiste numa simultaneidade entre os níveis de mostragem). Vemos o que vemos, vemos o que os personagens realmente são e sentem, e ainda vemos (quase tudo) o que o cinema permite que seja visto enquanto mecanismo/ meio de multíplices possibilidades. Os dois primeiros níveis estão evidentemente contidos no último, mas mantidos à distância, com vida própria; tese insensata, ade Stone. Exemplo: Mickey bebe uma chávena de café, lê uma notícia de jornal sobre os seus crimes (sequência a cores) –Corte –Mickey a construir uma fúria intensa (sequência a preto-e-branco) – Corte abrupto – Insert(a cores) de Mickey coberto de sangue–Corte –O verde cintilante da tarte de lima, que Mickey corta com o garfo e mete na boca –Corte –Condiz com o verde da Jukebox, de onde uma canção começa a ressoar. Simultaneidade entre o mundo exterior, o mundo interior e o mundo do cinema; o corpo, a alma e o belo (estético/artístico/metafórico dentro dos parâmetros da linguagem fílmica).

A estratégia é o que, livremente, podemos apelidar de interpenetração agressiva como caminho inevitável para a overdose. Aproximação como se de um nível superior e totalmente abrangente (enquanto olhar); olhar da quinta-dimensão: sobredosagem de técnica como forma de atingir um olhar simultaneamente interior e exterior; Stone vai tão longe quanto pode, não deixa implícito, mostra-nos tudo.

Nestas coisas de brincar com absolutos, uns quantos tendem a ficar amedrontados, outros tantos especialmente emotivos e alguns ainda incomodados pela exposição às fraquezas da objectividade, é obviamente a todos esses que se dirige um filme como NBK.

 

Imagem de dazeddigital.com