9 Março 2019      10:11

Está aqui

X - Outro lugar

Tanto Amaro como Linda ficaram mais uns dias naquela paz e, no dia em que tiveram de partir, despediram-se com um sentimento de vazio. Linda não estava já em si. Linda já tinha chegado a 80% do lugar onde estaria, no lugar onde ficaria. Esse lugar era um lugar feio, vazio, onde ninguém queria estar. Amaro sabia onde a mulher ficaria, conhecia bem esse lugar vazio.
Qual é o lugar mais distante de Portugal? Que antípodas do lugar de nascimento existe no planeta? Esse lugar é no outro lado do mundo. Se fizermos um buraco do sítio onde nascemos ou onde estamos, onde chegamos? Nesse lugar queria Linda ficar, ela mesmo o disse a Amaro.
Os detetives chegaram mais de um ano depois à ilha onde tinham estado as duas personagens da história. Boi esperava-os e tinha as cartas guardadas. Apresentaram-se e, após uma refeição, receberam as cartas e sentaram-se a ler. Entre elas, umas contavam os dias e outras estados de alma. Às segundas bastante vazias. Amaro contava tudo o que fazia numa escrita de médico quase imperceptível. Já Linda descrevia melhor aquilo que contava, aquilo em que se tinha tornado.
Na última carta, o envelope indicava que a carta devia ser lida pelos filhos de ambos. Os detetives ainda assim abriram e num misto de surpresa e resignação com o desfecho da sua investigação, leram as seguintes palavras:

Meus amores,

Nunca amei ninguém, nem nunca amarei tanto como vos amo. Será porventura a última vez que vos digo isto e, enquanto escrevo estas palavras, sei que será a última vez que as escreverei e que me recordarei de vocês. Ficam, para sempre guardados na minha memória e dela nunca sairão.

“Meus amores,
Arrastei o vosso pai para esta minha loucura, a última e embora o tivesse rejeitado antes, já por causa desta minha doença, ele abraçou-me e pretendeu ajudar-me.
Há um ano, descobri em análises que tenho uma doença rara que, muito mais agressiva do que o Alzheimer, me limpará toda a memória e me fará esquecer tudo e todos. Descobri que esta doença avançava e nem em Portugal nem no resto do mundo conseguirei tratamento para ela.
Decidi esconder-vos isto para não verem o estado debilitado em que me encontro. É injusto, dirão. Não tinha o direito. Não tinha, mas assim decidi e agora nada há a fazer.
Digamos que trouxe o vosso pai comigo no mundo, procurando encontrar um tratamento que não falhe, que me de algum alento. Tentámos na China, em Hong Kong e falhou. Procurámos em todo o lado. Acreditei que as agulhas e o lado positivo e negativo me trariam a memória que começa a escapar-me. O vosso pai demonstrou-me todo o amor e foi durante estes dias os meus olhos e o meu caminhar. É através dele que quero preservar a minha memória.
Se este meu último reduto não resultar, daqui a pouco tempo serei um vegetal e, vivendo, estarei morta. Não quero que me vejam assim. 
As águas deste mar de Koh Mak também não me trouxeram o remédio necessário. As águas deste mar trouxeram-me o alento para não parar de acreditar e sonhar. Assim o fiz. Perdoem-me, se puderem.
Se esta carta vos chegar, falhei e terei tornado o vosso pai uma pessoa extremamente infeliz. Se esta carta vos chegar, terei perdido tudo e a vossa mãe será a sorridente que conhecestes.
A minha última esperança reside no antípodas, numa mensagem que me chegou de um tratamento pioneiro num hospital da Nova Zelândia. É para lá que irei com o vosso pai e lá farei os tratamentos.
Espero que nunca cheguem a ler esta carta, pois nunca tive tanto medo de falhar. O vosso pai acompanha-me e ele boa poderá contar todos os pormenores, quando o nosso caminho conjunto terminar.
Decidimos que ele ficará num sítio próximo do hospital onde ficarei internada. Decidimos que me visitará uma vez por semana.
Daqui desta ilha viajaremos para a Nova Zelândia e lá espero voltar. Voltar a ser eu, voltar a lembrar-me. Lá espero que o contrario seja para mim o contrário do que sou inteiramente.
Despeço-me de vós com o meu amor incondicional inscrito nestas linhas, despeço-me daquilo que jamais poderei dizer.

O meu beijo que é como o toque da fibra de lotus no vosso rosto suave.”

Dali, já se sabia o que acontecera, ou quase tudo. Amaro e Linda tinham ido em busca de uma solução para um problema que não tinha solução. Fizeram de tudo para chegar ao fim e regressar ao início. Atravessaram o mundo e, no lugar onde chegaram, não havia solução. O tratamento, apuraram os detetives, através dos médicos, funcionou nas primeiras semanas e o casal foi feliz uns dias. Houve alguma esperança mas essa depressa se desvaneceu quando, um dia, Linda perdeu o brilho do olhar. Amaro ainda manteve esperança, degradando-se a si mesmo, como o conhecemos no início desta história. Até ao dia em que morreu no trágico acidente, Amaro acreditou. Embora tivesse queimado tudo o que identificasse, ainda acreditou. Quando morreu, apagou-se o último ponto de luz.
Linda morreu fisicamente semanas depois, acarinhada pelo toque de uma enfermeira. Tudo acabou ali, como tinha acabado já quando começámos esta narrativa.
Do sofrimento dos filhos não se falará pois as palavras dificilmente o poderiam descrever.
Fiquemos com o brilho e a chama viva no olhar de Linda que está guardado nos lugares que viu e repousa num jardim dos antípodas.

 

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