18 Janeiro 2020      16:36

Está aqui

Voltar a viver

Encarcerado no campo de trigo já abandonado e agora infértil, via o outro lado do pântano que era cheio de alimento e fertilidade.

Para lá chegar precisaria atravessar esse mesmo pântano, esse terreno cheio de animais monstruosos que vivem principalmente na nossa cabeça. As dores das mortíferas víboras que na pele deixam marca, ignoram o suave sabor do mel das abelhas que morrem ao picar.

Voltar a viver. Decidir voltar a viver depois de não se ter morrido completamente. Voltar a olhar o sol e o céu azul depois de um dia em que a chuva e as nuvens encheram a terra de tristeza, ainda que lhe tragam a vida.

Voltar a viver. Decidir que o fim ou a sua proximidade não são o final em si. Pensar que em cada instante há uma vida que se some e duas que surgem. Num Universo tão longo como a estrada cujo fim não se vê no horizonte do deserto, decidir voltar a acreditar nas gotas da chuva que abanam o pó do deserto.

Voltar a viver. Pensar em construir uma jangada com a pouca madeira que resta das árvores mortas no campo insólito onde estou e atravessar o pântanos dos monstros e dos medos até ao lado de lá, onde o ilimitado e o próspero é o fulcro da mente.

Voltar a viver. Acreditar que as víboras e as mordidelas existem apenas na minha cabeça e são os monstros do meu pântano que não se reflete em nenhum outro espelho a não ser aquele que me vejo todos os dias ao acordar.

Voltar a viver. Recuperar as forças depois da tua partida, da partida de todos. Voltar a alimentar a sede com as lágrimas da qual o sal se evapora e tempera os alimentos. Recuperar as memórias dos que partiram, aquelas que possam ficar e traduzir-se numa eterna sensação de presença.

Voltar a viver. Sentir de novo que a juventude está em nós como as dores de envelhecer. Sentir que os cabelos brancos são um louro disfarçado ou que os cabelos que fugiram habitam num sítio melhor, onde já não precisam de nós. Para isso, ficaram os do nariz e das orelhas.

Voltar a viver. Imaginar que a terra é plana e quadrada e rir desse pensamento como se o mesmo significasse que os gatos ladram e os cães miam.

Voltar a viver. Na bolha do casulo, esconder a verdadeira sintonia da sinfonia de um compositor que, surdo, ouvia e faria agora 250 anos.

Voltar a viver. Ser um só, impávido, mutável e apaixonado por si mesmo, como se o dia de amanhã fosse o terceiro dia. E esse, já se sabe, é o dia em que se volta a viver.

Sejam felizes e abandonem o terreno sem trigo, atravessem os pântanos viperinos e apreciem as terras férteis que vivem! Ainda que seja só e tanto na nossa mente.