(Conto em três partes)
De casaco cinzento, impermeável, às riscas, de um amarelo esverdeado e fluorescente, as botas plásticas, quentes, que lhe protegiam os pés e que, ao mesmo tempo, acomodavam micoses contínuas, António não era um homem feliz e não sentia que o dia de amanhã fosse um dia mais feliz que o de hoje. O hoje e o amanhã eram o que eram e não eram mais do que um contínuo passar de horas e de rotinas que só faziam sentido para alguns, para os ambiciosos.
O homem atirava as espinhas dos carapaus fritos, que uma vizinha tinha deixado pendurados no tal prego, aos gatos e enxotava os cães que se tentavam aproximar. No chão, ao lado da cadeira, um copo de vinho cheio, do qual bebia tragos entre mordidelas de carapaus e colheres de arroz malandrinho.
António olhava para dentro de casa. Nas paredes despidas, calendários de mulheres nuas assinalavam o passar dos dias. No chão, molhos de revistas velhas e livros que recolhia durante as horas do trabalho. Olhava-os e pensava que um dia os conseguiria ler. A sua ambição era chegar ao fim do turno com três ou quatro livros recolhidos entre os cheiros nauseabundos e imagens de podridão.
Quase chegara a hora de mais um turno. Era início do mês e precisava tirar a vinheta. Para quê, pensava? Mais um mês do mesmo. Seriam só mais uns livros e revistas recolhidos nesse mês. Foi mais cedo para a estação dos autocarros e ficou na fila, aguentando os olhares dos que não o percebiam e nunca o entenderiam, pois nunca viveram o mesmo que ele. António era um mutante. Um homem nascido no campo, perdeu quase toda a família, deixou de ser feliz. António era a sombra do corpo que tinha sido. Não era mais nada. Os seus olhos amarelados eram tão vazios e tão inóspitos como o horizonte de uma lixeira a céu aberto.
Recebeu a vinheta, pagou-a com o dinheiro contado que trazia e colou-a no passe. Não tinha conta no banco. Guardava o dinheiro numa lata, atrás de uma tijoleira que se mexia, na casa que, não sendo bem uma casa, era a seu próprio abrigo. Apanhou o autocarro de todos os dias e ficou na paragem de todos os turnos. Já o esperavam os companheiros de trabalho que não o entendiam bem nem lhe faziam perguntas. Não era preciso fazerem perguntas. Conheciam o vazio dos seus olhos e viam a sombra em que se transformara. O turno começou ia a Lua alta e as luzes que iluminavam as ruas eram incandescentes.
António sentiu-se mais vazio que nunca nesse dia. Era o primeiro dia do mês e algo o fazia sentir como se fosse o último. A rotina da vinheta, do autocarro. A rotina das três paragens no percurso até ao local de trabalho e a sensação de nada consumiam os pensamentos de António. Como se fosse o último dia, o primeiro dia do mês era o percurso feito no turno. Na parte de trás do camião de recolha, sentia o cheiro nauseabundo e via os alimentos putrefactos. Atirava para o camião aquilo que as pessoas já não queriam. António sentia-se como se ninguém o quisesse. Os vizinhos queriam. Preocupavam-se com ele. Tinham pena e sentiam que talvez, se António pudesse… talvez se alguém… talvez. Mas nunca passara do plano hipotético e António sentia que não tinha família. As raízes da sua árvore desapareceram e era apenas o ramo de um tronco que fora queimado nas lareiras desse país que, no inverno, se torna mais frio que os sentimentos nos corações dos homens que não sentem.
Fez o turno, ouviu as gargalhadas dos colegas de trabalho e quis rir-se também, mas os músculos não deixaram. As rugas mantinham-se no mesmo sítio e os olhos deixavam cair uma lágrima de tristeza, uma lágrima salgada de quem tem consciência e não se pode mexer. Apetecia-lhe fugir. Não queria andar mais de autocarro. Estava cansado dos cheiros nauseabundos e das visões pútridas. Queria mais livros. Era António e não sabia sorrir. Cismava apenas na vida que não conhecia.
Imagem de temperadoagosto.blogspot.pt