8 Abril 2016      17:07

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A VEZ DO ZÉ POVINHO

Quem se informa sobre a vida das celebridades, dos políticos e dos homens e mulheres mais endinheirados apenas pelos tabloides ou pelo jornalismo empresarial tem a impressão de que riqueza e poder são características inatas. Este tipo de imprensa cumpre papel semelhante ao dos contos de fada, revestindo com auras de retidão e de virtude as personalidades de indivíduos pertencentes às classes mais altas. Quando um deles surge implicado num caso que possa manchar a sua imagem impoluta, o fato degradante é via de regra apresentado como um ponto fora da curva, justificado por um traço excecional da sua personalidade, ou por uma conjuntura que o teria obrigado a agir de modo inesperadamente mau.

Uma ligeira comparação entre o tratamento jornalístico dispensado às elites econômicas e o que frequentemente é reservado aos mais pobres ajuda-nos a compreender o esforço pedagógico dos veículos de comunicação para criar uma perversa distinção entre “eles”, os ricos, e “aqueles”, os pobres. Os primeiros podem vir a ter nos textos jornalísticos verdadeiras peças de defesa. Os segundos, tratados como irremediavelmente maus, terão a vida marcada pelo encarceramento recorrente e pela diminuição constante de oportunidades de escaparem à criminalidade.

Neste “jornalismo conto de fada” está um dos retratos mais acabados da desigualdade social. Estas publicações massivas buscam diminuir os impactos desta desigualdade sobre a subjetividade daquele arquétipo que, em Portugal, recebe o nome de Zé Povinho.

As relações humanas, por serem desiguais, são sempre constituídas de tensão e é ingénuo pensar que o Zé Povinho não esteja atento ao que se passa à sua volta, ou que ele não reconheça entre os mais ricos os adversários dos seus interesses, ainda que, perante estes, o Zé Povinho sinta-se obrigado a atuar com alguma deferência. Todavia, na primeira oportunidade, este não medirá esforços para dar a volta e, atingindo a dignidade do poderoso, retirar-lhe a legitimidade que o mantém em posição superior. São movimentos imprevisíveis, costurados na intimidade dos lares e nos espaços laborais, culturais ou recreativos, longe do olhar vigilante do Poder instituído. Os sinais desta movimentação eclodem no cotidiano da vida democrática. Por exemplo, eles são percetíveis durante aqueles processos eleitorais cujos resultados parecem contrariar todas as previsões, levando o sistema político em que está inserido a ajustar-se à vontade popular.

Os poderosos, por sua vez, buscarão dar o troco, utilizando os meios à sua disposição, entre eles, o jornalismo conto de fada, que os ajuda a acobertar os seus objetivos meramente financeiros. A história econômica do Ocidente vem demonstrando que a imposição dos “humores do mercado” sobre as políticas sociais tem abalado os alicerces democráticos, desde as últimas décadas do século passado. Os conglomerados financeiros, para especularem mais e mais, parecem ter ido demasiado longe na aniquilação dos poderes públicos, em benefício do rentismo e da precarização laboral.

Entretanto, com mais pobreza e com o aprofundamento da “crise” de órgãos de representação coletiva, como partidos e sindicatos, a última década viu nascer movimentos sociais cujo principal objetivo é o desafio das bases simbólicas da dominação. Estes novos movimentos ocupam as ruas e as redes de computadores e somente são possíveis graças à internet. Uma categoria dentre eles surge como um importante aliado do Zé Povinho, naquele triturar de sentimentos no qual este constrói silenciosa e coletivamente as suas alternativas de libertação.

Trata-se dos coletivos de profissionais informáticos anônimos, que agem para tornar de acesso público documentos que, até então, estavam cobertos pelo secretismo, numa verdadeira rede subterrânea de cumplicidade entre gentes muito ricas. O mais proeminente destes grupos informáticos chama-se wikileaks. A atualidade, contudo, está impressionada com a gigantesca cartela de clientes de uma única empresa de advocacia especializada em burlas a fiscos, a Mossack Fonseca. Sediada no Panamá, esta empresa foi contratada às escondidas por figuras proeminentes das artes, dos esportes e principalmente da política e da economia mundiais.

Todos sabemos que as riquezas são, como sempre o foram, construídas sobre carnificinas e explorações. Graças àqueles coletivos de informáticos, o Zé Povinho pode agora amparar a sua indignação em informações às quais sequer sonhava ter acesso. A pergunta que estes acontecimentos sugerem é: o que farão os movimentos sociais e os cidadãos com informações desta natureza? Conseguirão desviar-se das armadilhas mediáticas que visam diminuir a relevância destes achados, como parte daquela ação pedagógica que disfarça os célebres e os ricos como seres impolutos?

De pronto, não se consegue prever os efeitos de operações deste tipo, aos quais a imprensa prefere chamar de “fugas de informação”, sugerindo nas entrelinhas a ilegalidade da operação em si e a vitimização dos sujeitos denunciados, que tiveram as suas “informações” publicitadas. É provável, no entanto, que a sabedoria do Zé Povinho, cultivada no constante exercício de comunicação com os seus pares, reserve-lhe alguma vantagem no desafio de aceder e interpretar informações que lhes contam uma outra história sobre a constituição das elites econômicas e políticas, bem diferente daquela disseminada pelo jornalismo conto de fada.

Uma coisa é certa, depois de conhecermos os documentos secretos divulgados há alguns anos pelo wikileaks, tornou-se possível confirmar que o Poder também se exprime pela chantagem e pela conspiração, bem como saber quais são os atores e os organismos que se encarregam de levá-las adiante. Com estes “Panama Papers”, outra verdade eclode a favor do Zé Povinho: a alcunha de “ladrão” dirigida a alguns dos poderosos que o rodeiam já não poderá ser entendida apenas como um irracional arroubo revanchista. E assim também se faz a luta de classes, ainda que, na praça central, a calmaria pareça imperar.

Imagem de capa: Fotografia: Acervo Pessoal. Zé Povinho na Festa das Flores de Redondo