16 Abril 2016      11:47

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VAZIO

"PARALELO 39N"

Os pensamentos dos homens e das mulheres estão vazios. Não há nada nas caixas nem nas casas onde vivem as pessoas. O mundo é intermitente. Na escolha das palavras são os homens e as mulheres que falham ou acertam, são esses homens e essas mulheres que preenchem os espaços vazios das palavras. São as palavras que preenchem os lugares vazios das pessoas.

Abro uma caixa e olho para o seu interior e não vejo nada. Está vazia. Vazia de coisas, vazia de sons. Fecho a caixa e olho pela janela do pequeno apartamento onde estou. Procuro, no exterior, o conforto que o vazio deste apartamento não me dá. O soalho parece-me cada vez mais frio. Nem o pouco calor emanado da sua madeira me ajuda a desviar a atenção da ideia de vazio que persiste na minha memória, a mesma ideia que vagueará no pensamento de tantas mulheres e de tantos homens.

Sentado numa cadeira a olhar pela janela, que é tão grande, sinto o peso dos meus 90 anos. Sinto a força dos músculos a desparecer, escondidos debaixo da pele enrugada. Os meus cabelos, que ainda se agarram à pele, perderam a pigmentação e estão brancos como os poucos que me restam na cabeça. A pele está pálida e cheia das velhas manchas que me preencheram a vida. Não esqueço nenhum dos momentos que marcaram os dias, não olho levianamente para as janelas do mundo.

Da minha família recordo a presença nos jantares animados, numa sala em que todos nos sentávamos e partilhávamos as histórias, as alegrias, as zangas, menos os pecados que nunca contámos uns aos outros. No vazio que foi a vida de cada um, estavam os segredos guardados. Como gostava de viver outra vez o tempo. Como gostava de poder tatear o vidro da janela, deixando lá as marcas da minha transpiração, as impressões digitais que contam histórias. A minha. A história do vazio.

Não há, nesta sala, um resto de mim a não ser eu próprio. Lá fora passam as folhas que o outono faz cair e que o vento leva para longe. Movimento o olhar esperando segui-las. Nos meus olhos, cansados, vazios, não se vislumbra o que escondem na poesia do espaço. Além das minhas olheiras, trazidas pelos anos, não há mais nada. Não percebo a mudança porque nunca a quis aceitar em mim e preferi fechar os olhos quando, na caixa, se acumulavam acontecimentos, gestos e memórias. Sempre preferi vê-la vazia como vazio também está tudo além desta janela.

São as gotas de chuva que começam a cair que preenchem esses espaços vazios e tomam o lugar das minhas lágrimas que deviam cair, mas não o fazem. O vácuo do silêncio é uma redoma de vidro vazia e inalcançável, ela também. Fecho os olhos e adormeço nesta cadeira. Num gesto, fecho a porta por detrás de mim e deixo-me diluir no vazio das coisas.  

 

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