13 Outubro 2018      13:53

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Vasilhas

A teoria predominante na época era a de contraciclo. Isto quer dizer que em vez de se encher as vasilhas, a ideia era esvaziá-las, derramá-las fazendo o maior barulho possível. Maria, mulher matulona, grande e cheia de energia, era a que trabalhava no negócio das vasilhas. Ela sabia o que fazia. Gritava vorazmente aos clientes e atraía a sua atenção. Arranjava assim clientes com fartura que compravam as vasilhas vazias. O reclamo funcionava. A gritaria sobrepunha-se à dos outros vendedores com iguais vasilhas.

Esses até as vendiam cheias, com leite e azeite. Maria, a mulher de peito cheio, vendia as suas esvaziadas. Jogava tudo ao chão e gritava com a clientela. Tens de ser tu a encher. Este fica para mim e aquilo funcionava. Maria sabia o que fazia. Até rima, até parece verdade. Mas não era. O truque era que com a retórica, vendia. E aquilo soava bem. A lei do mercado. Os ouvidos a ouvir a melodia da Maria.

Naquele dia, no mercado, todas as vendedoras chegaram cedo, avental, lenço na cabeça. Tinham fechado, na noite anterior as vasilhas a cadeado. Estavam cheias. Durante a noite, o azeite tinha adormecido, com o frio causado pela geada e de manhã estaria meio em coágulo. O leite, chegado de manhã, transportado cedinho forneceria todo o mercado. Assim estaria o dia, assim estaria o negócio, pronto e preparado.

Só que não estava. Tudo virado do avesso, tudo derrubado. Vasilhas partidas, leite entornado e nada no lugar. As mulheres mal viram, mal chegaram, começaram a chorar e a jorrar lamentos à medida que as lágrimas escorriam também. Só Maria não chorava. Só Maria tinha as vasilhas intactas, como se aquele furacão não tivesse passado pela sua banca. Tinham passado a noite vazias e assim permaneciam mas em condições. E nisto, com o choro das outras, começou Maria o seu pranto.

- Vejam, vejam, ouçam o que vos digo. Comprem das minhas que não há perigo. Comprem das minhas que resistem a tudo. Cheias? Ó freguês, isso só traz o mal. Mais vale comprar jogado no chão o recheio. Olhem o que aconteceu às outras. Vejam aquilo que se passou com elas por estarem bem. Não queiram viver na riqueza de ter o copo cheio. Vazio é que o vosso está bem. Lá porque eu guardo aquilo que despejo para mim e vos vendo pelo mesmo preço, que vos sirva de emenda, a vós e a estas que me rodeiam.

Assim gritava Maria e, já rodeada por gente, clientes a comprar como se estivessem desesperados, nas urnas, para serem enganados. E assim era. Maria no seu reclamo. Vendedora exímia. Eliminara o negócio todo. Que ninguém a acusasse a ela de partir a concorrência e afastar-lhes a clientela. Não deixara rasto no que fizera. Não fora ela, foi alguém que ela nem conhecia, nem tinha nada a ver. O dinheiro que pagara não fora ela, nem dera as ordens.

A lei do mercado assim impunha. Deixemo-nos de dramatismos, dizia. É preciso ser forte. Estão fartos de estar bem, pensava. E com as vasilhas que cada um levava, mais o avental de Maria engordava. É a lei do negócio. O mercado assim impunha e na banca da Maria as vasilhas desapareciam. As outras olhavam e questionavam-se como só as dela se tinham escapado. Maria dizia. A minha banca estava vazia. As minhas vasilhas não tinham nada. Eu garanto segurança. Falo verdade. A minha verdade será a dos meus clientes, que me acreditam. Ninguém vos partirá a vasilha vazia. Cada dia que encherdes de azeite, trazei-me e tereis vasilha para a vida. Falava assim, falava tão bem que toda a gente ficava comovida. Maria era tal e qual! Maria era a mulher mais forte de avental.

E, naquele mercado, tempo passado, era a única que vendia vasilhas. Vendia vazias e enganava a clientela. Mas isso nada interessava porque não havia mais ninguém. Era ela que dava ordens e era ela que mandava. E, agora, quem quisesse pinguinha de azeite ou litro de leite tinha de lhe comprar. É a lei do mercado, é a do presente. Para Maria, haja vasilhas.      

 

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