23 Abril 2022      22:13

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Um parafuso a menos

Último dia de primavera, quase altura de começarem as férias do verão, depois de um ano muito cansativo de trabalho, Loitão tinha tudo pensado para essa nova fase do calendário gregoriano. A sua vida poderia ser diferente ou ser completamente igual ao que era até aí. Dependia só daquilo que pudesse acontecer no tempo intermédio. Loitão era um homem trabalhador e muito esforçado. Dedicava-se inteiramente ao seu trabalho e a sua vida pessoal e familiar reduzia-se a quase zero, uma vez que não tinha nenhuma há muito tempo. Mecânico de profissão, manobrava de forma inteiramente autónoma todas as peças com que trabalhava. As máquinas conheciam-no como ninguém. O seu drama não eram os aparelhos nem a mecânica. Eram as relações humanas e pessoais.

Fora da oficina, a falar com outros seres humanos, nada do que dizia fazia sentido. O seu cérebro estava apenas programado para carros, motores, peças… diziam as pessoas que tinha um parafuso a menos. Impossível! No seu trabalho, nunca sobrava ou faltava uma única peça. Loitão não tinha um parafuso a menos! Nem compreendia o significado de tais palavras quando era expressas pelas mais diferentes e caricatas personagens da comunidade. Não o magoavam pois para si, ouvir que tinha um parafuso a menos não fazia sentido. Na oficina não faltavam parafusos. Na sua vida pessoal não usava parafusos para viver.

Loitão vivia para o trabalho e sabia que viveria enquanto o trabalho durasse e para ele vivesse. Não lhe interessam outros afazeres. O seu cérebro era matemático. A sua dor era química e física. De nada lhe servia falar com pessoas que não o entendiam, pois tal não faria sentido a ninguém.

Dizer-lhe que tinha um parafuso a menos não o magoava, não era algo que ele pudesse resolver e, no seu espaço, todas as peças estavam ou no sítio certo ou disponíveis.

Quantas vezes somos Loitão, em que os dedos nos são apontados pelas mais diferentes razões que, verificado o fundo, não há razão para tal. Nunca tudo em nós pode ser perfeito. Considero e bem que na perfeição há um parafuso a menos, que a torna imperfeita. Considero eu. Podeis contrariar esta minha opinião. Podeis usar a matemática de forma ilustrativa. Uma opinião é pessoal. Loitão não tinha qualquer opinião pois só se interessava pelo encaixa de peças e pela forma como se organizam as coisas. Não sabia nada do mundo e, mais do que isso, o mundo não sabia nada de si. O estranho causa estranheza e cria no ser humano um desejo enorme de defesa. Apontar o dedo ao pobre mecânico porque lhe falta um parafuso não significa que o mundo acabe amanhã. Muitas vezes, aqueles que tem parafusos a mais, são os que mais danos causam na mecânica do mundo, na física e na química, na biologia e na humanidade. Loitão não tinha os parafusos todos, nem eu os terei… nem nos os teremos. A perfeição não é sinónimo do humano, independentemente do credo ou religião. Agora, mais tarde ou mais cedo, todos nos sentimos apontados pela quantidade de parafusos que temos ou poderemos ter a menos.

A Loitão não lhe interessava porque não compreendia. A nós não nos deverá interessar porque compreendemos!