29 Setembro 2019      06:23

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True Detective

Repetição, ‘acto de repetir’. Houve uma época em que a habilidade para concretizar efeitos de repetição era a norma pela qual se definia o autor de cinema. Prerrogativa do realizador, que fique claro. John Ford fazia sempre o mesmo filme, o que o próprio não desmentia, e ninguém lhe poupava encómios, Alfred Hitchcock só muito raramente alterava o método com o qual captava a nossa atenção. John Carpenter, com bastante sucesso crítico, ou Brian de Palma, este com pouco ou nenhum, também utilizavam sempre a mesma metodologia (Brian de Palma ainda anda por aí, John Carpenter diz que não). E que dizer de David Lynch ou Stanley Kubrick (que mudava de género de filme para filme, mantendo tudo o resto) ou Quentin Tarantino. Não, não é uma interrogação.

Os tempos mudam, todavia algumas almas notavelmente insistem… E este é o maior elogio que se pode fazer a Nic Pizzolatto, o criador da série antológica True Detective, que já vai na 3ª temporada.  

O mínimo que se pode dizer de True Detective é que começou maravilhosamente. A 1ª temporada é um daqueles extravagantes pontos de inflexão, onde do topo se deriva sem que isso implique descer. Coisas da física dos corpos em jornada pelo Cosmos sem estrelas ou planetas por perto. E também da Arte. A ele, Pizzolatto, devemos uma das personagens mais carismáticas que qualquer um (desde que com memória afectiva pela ficção) recordará para sempre. Rustin Cohle, o pessimista ateu, interpretado Matthew McConaughey. Devemos-lhe também uma forma de contar histórias, que não sendo nova, através linhas temporais que se interligam, contém em si um espírito ancorado na perda como fim absoluto que (that’s the catch) não permite um fim definitivo, a vida possível em modo de navegação à vista que não pode deixar de ser vivida, por assim dizer; exposta de uma forma opressiva, feita de planos tendencialmente longos, evolução narrativa lenta e quebras de tensão visual em contraste com a robustez e secura de um diálogo sincopado (do qual, por exemplo, uma boa parte das vezes se excluem artigos e elementos de ligação). E aí o termo novidade, uma vez sublimado o método na estrutura narrativa, já pode (e deve) ser utilizado.

Na 2ª temporada as coisas já não correram tão bem. Pizzolatto não aliviou a panela de pressão, ainda e sempre à beira de uma explosão que não ocorre, mas deixou para trás uma parte do método. Enfim, não quis fazer igual, e acabou a empurrar com a barriga. O que, mesmo com o risco de se cometer uma injustiça, dá nota de animal assustado. Todos nos lembramos de Kid A, o álbum seguinte a OK Computer, dos Radiohead. E agora? Não sei! Mas alguma coisa tem de se fazer… Bom, pode ser que ninguém repare. Mas claro que acabamos por notar, afinal, estamos todos a olhar para lá. E com um máximo de atenção. Pizzolatto reconheceu o erro, como se pode comprovar nas poucas entrevistas que deu entretanto.

A 3ª temporada foi, assim sendo, o regresso a casa por que tanto ansiávamos. Tal como, socorrendo-nos de John Carpenter, Escape From L.A. não é uma mera repetição de Escape From New York, mas o seu ilustre e inevitável complemento, também esta 3ª temporada é a necessária redundância que dá sentido ao todo. Não porque repita, mas porque permite a profusão, complementando assim o que já entrevíramos na 1ª temporada. Os casos nunca se resolvem na sua totalidade, mesmo que multipliquemos por dois o tempo para os resolver. Mesmo que se jogue para além do tempo, no limite da memória, onde o eu se desvanece e a resolução já nem sequer importa. Certos muros, tal como certas classes dominantes, nunca serão derrubados.

Pizzolatto gosta de piscar o olho ao melodrama, mas não é, definitivamente, um coração mole. E não me venham com o final da 1ª temporada, que é tudo menos a vitória da esperança. A luz está a ganhar, sim, sim, Rusty, engana-te que eu também finjo que acredito. Bem sei que já ouviste falar nessa tal de energia escura, a tal que, mais tarde ou mais cedo, vai acabar por atirar a gravidade para os confins do esquecimento, onde, segundo consta, tudo é negro.

Imagem de capa de Lacey Terrell/HBO