4 Fevereiro 2021      11:12

Está aqui

Todo mundo tem o diabo que merece

Não comprei novos espelhos na Amazon, nem noutro lugar. Foi uma piada. Depois de quase 20 anos encontrei, no sótão, um espelho da minha casa anterior; limpei-o e agora está pendurado na casa de banho do rés-de-chão. Depois de alguns dias, o mesmo tipo que falava comigo no espelho no andar de cima, começou também a aparecer aqui, embora, até ao momento, tenha permanecido em silêncio porque está ressentido pela minha piada anterior.

Ouço - especialmente à noite - vindos de ambos os lugares, ruídos e sons semelhantes. É claro que os dois espelhos são janelas, ligadas entre si e a uma rede de espaços comunicantes, atrás dos quais - estando do lado de fora - vejo e ouço desenrolar-se algo que lembra o que acontece deste lado, mas muitas vezes tem a consistência de um sonho.

Durante algum tempo, imaginei que o tipo ali fosse um reflexo de mim mesmo. No entanto, essa explicação tranquilizadora nunca me convenceu completamente. Aquilo costuma dizer palavras espirituosas, misteriosas ou alusivas, que me deixam inquieto, ao ponto de correr o risco de um acidente de carro, como contei no dia 5 de agosto.

É verdade que "nada mais do que um espelho apavora uma consciência que não está tranquila", mas dessa vez tive a sensação de que estava tratando com alguém muito poderoso. Sobre mim, e muitos outros assuntos, ele às vezes sabe mais do que eu mesmo sei, ou lembro. Ele sabe tirar de mim pensamentos e lembranças agradáveis, inspirar-me pensamentos perspicazes, mas também sabe deixar-me com raiva, a ponto de me fazer dizer palavras que não penso e não quero dizer.

Ele leu muitos livros, alguns dos quais eu também li, mas às vezes parece conhecê-los todos. É uma coincidência que eu reli recentemente em alguns livros antigos, que contêm referências das quais mencionei: Woland e suas vicissitudes na Rússia; a conversa de Jesus Cristo no barco no mar da Tiberíades com o mesmo personagem que se apresentou à porta de Maria para anunciar o seu nascimento, e com quem Jesus, quando adulto, passou muitos anos como pastor; a conversa da mulher com um desconhecido voltando para casa à luz da lua. Eles inspiraram-me com alguma intuição sobre o morador do espelho. Não posso dizer o nome, porque a escolha dele, entre os muitos que têm sido utilizados, o define de acordo com as necessidades de quem o nomeia. Ao contrário de muitos, estou convencido de que esse habitante sem nome existe apenas no espaço atrás dos espelhos e não fora dele. Lá, ele é o guardião daquela parte de nós que muitas vezes ignoramos, esquecemos ou queremos manter escondida ou silenciosa.

Agradecimentos: o título é retirado do “Clube Dumas”, de Arturo Pérez Reverte (1993). A citação é de Pirandello, “Sonho”, mas talvez não 1928. Os livros a que me refiro - todos já mencionados - são “O Mestre e Margarita”, de M. Bulgakov, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de J. Saramago, e “A Hora do Diabo”, de F. Pessoa. Gostaria de encerrar com a única frase de que me lembro de “Os irmãos Karamazov”, de F. Dostoievski: “acredito que se o diabo não existe e, portanto, foi criado pelo homem, ele criou-o à sua imagem e semelhança”.

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Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.