4 Janeiro 2020      11:33

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Terras sem tempo

O termómetro marcava 43 graus centígrados, uma temperatura que já se tornara normal por aqueles lados. Situada no fundo de um córrego, havia uma casa pequena, pintada de branco e com paredes tão grossas que não deixavam que, durante o dia, esse calor que se fazia sentir entrasse lá dentro. Durante a noite, porém, quando o Sol fugia, o calor escondia-se naquela casa. Lá dentro, os 43 graus do calor ficavam escondidos, até que o escuro e o frio da noite se fossem embora, aos primeiros raios de Sol.

Na terra sem tempo, não havia relógios que marcassem o princípio e o fim de nada. Havia apenas temperatura e termómetros. No entanto, o que à nossa narrativa interessa é que naquela casa viviam duas pessoas, dois irmãos solteiros, o Senhor Calor e o Senhor Frio. Um vivia na rua principalmente durante o dia. À noite, escondia-se dentro de casa logo que o irmão Frio começava a aparecer lá em cima do monte. Os seus assobios denunciavam a sua chegada e Calor saiba que era altura de se fechar dentro de casa.

Os irmãos não se falavam. Desde que os pais tinham partido da Terra sem Tempo, para a terra sem lugar definido, ficaram os dois a tomar conta daquela propriedade de sobreiros, medronheiros e uma pequena casa caiada de branco. Não se falavam. Não se tinham entendido em relação às partilhas e a melhor maneira de resolver o assunto foi a de, embora partilhassem o mesmo espaço, não se falassem entre si e nem se vissem.

A solução encontrada, sem que nunca tivesse sido discutida pelos dois, foi a de viverem no mesmo espaço e ao mesmo tempo sem nunca se cruzarem. Quando o Calor, durante o dia, andava pela rua, à noite fechava-se em casa e o Frio que, durante o dia se fechava em casa, saia à noite e passeava-se fazendo a sua vida e semeando uma camada de branco à volta da casa que, logo que Calor saia à rua, limpava e tornava a por tudo em verde.

Assim andaram anos e anos e aquilo até funcionava bem, pese embora todas as questões que daí advêm. É sempre muito triste que há desavenças entre irmãos e, em terras sem tempo, não há fim à vista para essa quezília entre familiares. Como se dizia, tudo funcionava bem até um dia em que as coisas mudaram e naquela terra sem tempo, o calor e o frio se encontraram à porta de casa. Os olhos de cada um mudaram de forma tal que, no olhar de Calor se podiam ver chamas de fogo tais que quase queimara tudo à sua volta e nos olhos de Frio, um gelo tão grande congelou e queimou também todas as sementeiras na sua propriedade e na propriedade de todos os vizinhos em volta.

Foram precisos tantos outros anos para que as coisas voltassem ao normal. Foram precisos que dias e noites passassem de maneira a que o tempo que não existia na terra se sentasse na encosta como um árbitro e resolvesse os problemas. Calor e Frio continuaram sem se falar. Avisavam-se por gestos quando chegavam e quando partiam para que não se voltassem a confrontar.

O tempo, árbitro naquela terra, decidiu que metade do ano ficaria o Calor a tomar conta dos terrenos dos irmãos e na outra metade seria o Frio que andaria livres pelos montes e pelos vales. O termómetro que nuns dias marcaria 43 graus à sombra, pouco mais de 2 marcaria nos outros dias e o equilíbrio foi encontrado. Há coisas que não se explicam facilmente e que, mesmo que não se expliquem, a solução está tão óbvia e tão à vista que facilmente se pode implementar. Assim acontece na terra sem tempo e assim acontece em terras onde o tempo conta e corre e onde as famílias são reais.