1 Janeiro 2021      20:41

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Talvez eu devesse comprar um espelho novo na Amazon

Espelho (E) Cara feia, dormiste mal?

Giuseppe (G) Dormi pouco. Ontem à noite, queria terminar de reler “Leão, o Africano”, e apaguei a luz às 3h. Mas valeu a pena: é um romance que se baseia em cuidadosa pesquisa histórica e é escrito de maneira encantadora. Lembra-me as “Memórias de Adriano”, da Yourcenar.

(E) Lês livros antigos e relê-los também! Talvez tu os compres na Amazon e te sintas culpado por contribuir para os lucros de Jeff Bezos e para a ruína das livrarias.

(G) Não tenho simpatia por Bezos, mas também não tenho nenhuma aversão. Eu simplesmente gostaria que o seu negócio - como o de todo comércio eletrónico - pagasse impostos justos sobre os lucros e salários justos para aqueles que trabalham lá. A Amazon é de uma grande conveniência quando se trata de livros. O tempo das pequenas livrarias de “bairro” provavelmente acabou, para sempre, e mesmo as maiores, nas principais cidades, passam por maus bocados. Livrarias muito grandes, onde se pode encontrar facilmente o que procura imediatamente, e alguns que têm um grande sortido de livros usados, quase não sobrevivem. Já as vi em Madrid, em Barcelona e no Chiado, em Lisboa, que está cheio de alfarrabistas. São lugares maravilhosos para quem gosta de livros, mas é preciso ir pessoalmente e a procura nas estantes é longa. No entanto, existem organizações de vendas alternativas na Internet e que montam redes de pequenas livrarias com catálogos bem elaborados, onde podes encontrar o livro que procuras, talvez usado, e ele é enviado para tua casa. Por exemplo, Bezos não tinha este livro de Maafouz porque ele estava esgotado. Eu recebi-o de uma livraria na Itália que ainda tinha um exemplar. Um pouco amarelado pelo tempo, como eu gosto. Preço ainda em duas moedas: em liras e em euros.

(E) E que outras coisas antigas irás ler nos feriados de fim de ano?

(G) Acho que vou retomar a história de Taor, príncipe de Mangalore e o Quarto dos Magos.

(E) Tu és incurável: um nostálgico ambivalente, mas não ousas admitir. Talvez compres também presentes de Natal na Amazon.

(G) Tu tentas provocar-me, como se não me conhecesses. Gostaria de responder que também comprei um espelho novo na Amazon, porque estava com um desconto na “Black Friday”. Como todos os anos, a aproximação desta festa - desde menino – deixa-me triste. Geralmente gosto de dar presentes e também de recebê-los. Muitas vezes vejo algo por acaso, às vezes numa viagem, que me faz pensar em algum amigo, e é fácil que isso se torne um presente no próximo encontro. O aparato comercial, a propaganda implacável, o frenesim das compras e presentes - mesmo que eu não tenha feito nada no Natal, há anos - a ênfase na "bondade" forçada, as iniciativas benéficas e benevolentes "pelos menos favorecidos" que duram um dia, estragam o meu bom humor. E não sou crente, portanto nem mesmo as motivações religiosas da festa me consolam. Muçulmanos e judeus têm feriados religiosos importantes que não combinam com este triste aparato comercial. Os presentes que trocam são principalmente alimentos e objetos tradicionais, geralmente caseiros.

(E) E tu acreditas que esses teus enormes sofrimentos espirituais interessam a algum dos leitores?

G) Antes de mais nada devo dizer que não sei se alguém lê o que escrevo. Se sim, no entanto, acredito que meu desconforto possa ser comum a algumas outras pessoas. Poucos o manifestam, porque não é socialmente aceite: és visto como se te considerasses "superior" aos outros. É percebido como orgulho, porém, é quase uma sensação de tristeza, de opressão. Talvez haja alguém que possa reconhecer algum traço de sua própria neurose e sorrir ao ler o texto.

(E) Bem, pelo menos gostas da festa de Ano Novo?

(G) É a festa mais triste e vazia de todas, superada apenas pelo Carnaval. Com um motivo agravante: a eclosão de fogos de artifício à meia-noite, mesmo à distância no campo, assusta muito os cães. Durante anos, passei aquele momento no jardim acariciando meus dois seres peludos para mantê-los calmos. Não preciso de mais para mim, na última noite do ano, enquanto durar esse hábito idiota.

(E) Eu entendo que não tenho que desejar-te nada, porque essas são não-festas. Vejo-te em 2021.

 

 

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Nota do autor:

Apenas algumas informações para quem fique intrigado com os livros que mencionei. Amin Maalouf escreveu "Leon l'africain" em 1987 (Livre de Bolso). Esta autobiografia fictícia começa com uma história verdadeira. Em 1518, um embaixador do Magrebe, retornando de uma peregrinação a Meca, foi capturado por piratas sicilianos e oferecido como um presente ao Papa Leão X. Este viajante foi Hassan-al-Wazzan e tornou-se o geógrafo Giovanni Leone de Medici, conhecido como Leão, o africano. A sua vida foi fascinante, marcada pelos grandes acontecimentos do seu tempo: quando era criança viveu em Granada durante a Reconquista, emigrou para Fez com a família para escapar à perseguição e à Inquisição, encontrou-se no Egipto durante a conquista dos otomanos, visitou Timbuktu durante o império de Askia Mohamed Touré e finalmente viveu em Roma no momento mais esplêndido do Renascimento que terminou com o saque pelos soldados de Carlos V.

Marguerite Yourcenar escreveu "Mémoires d'Hadrien" em 1951, existe - com o mesmo título - em português: edição CIDMY 2002. Um romance histórico-filosófico, escrito com um estilo denso e com palavras cinzeladas. É a meditação do imperador Adriano à medida que o fim de sua vida se aproxima, na forma de uma longa carta endereçada ao seu sucessor Marco Aurélio.

Gaspard, Melchior et Balthazar é um romance de 1980 de Michel Tournier (Gallimard), existe como Gaspar, Belchior e Baltasar, tradução de Virgilio Martinho, edição Dom Quixote 2011. O romancista inspira-se na narração evangélica dos Reis Magos. Em torno de cada um deles constrói um perfil humano e traz à tona as motivações que os impulsionam em seu caminho (amor, beleza, poder, curiosidade). A invenção de Tournier enriquece a história com a presença de um quarto Rei Mago: Taor, príncipe de Mangalore, que inicia sua jornada em busca da receita de lukum e chegará atrasado para sua nomeação.

Os Alfarrabistas de Lisboa a que me refiro são a livraria Bertrand e a livraria Sá da Costa, na Rua Garrett. A ler Devagar, em Alcântara, deve ser muito bonita e espero visitá-la em breve.

Prosperidade para todos os alfarrabistas.

Desejo a todos os leitores e colaboradores do Tribuna um tempo para fazer o que os faz sentir bem.

Podem contactar-me pelo email gsteffenino@hotmail.it

 

Nota do editor:

Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.