10 Abril 2016      14:53

Está aqui

SENTA-TE, NÃO SAÍMOS NA PRÓXIMA

"TEXTURAS"
O acordeão como guia, corro, como sempre, fugindo do tempo, distribuindo encontrões e desculpas escusadas. Chego, ainda ofegante, até ao cais sobrelotado de almas torturadas pela dor, pela solidão, aparentemente indolentes. Ouço alguém chorar. Desprendem-se gargalhadas e planam até mim. Procuro-as vagamente e dou por mim a observar-te.
Chega o metro, entramos, sigo-te calada, mas, olhando-te descaradamente, impregnando-me da tua imagem, absorvo a tua essência e assimilo a tristeza que pressinto submergir-te. Ignoras-me.
Ocultos atrás dos óculos, os teus olhos procuram refúgio na solidão espelhada pelo vidro. Reservado, atrás dos longos cabelos que te eclipsam o rosto, olhas para mim, mas não sorris, nem reages, indiferente.
Secretamente sonegados pela barba, os teus lábios, perfeitamente cinzelados, procuram o cigarro que seguras da mão direita e levas à boca despreocupadamente. Travas repetidamente, atiras a ponta para o chão. Observas-me agora.
Será que foi um sorriso que vi transfigurar-te o rosto? O teu olhar, preso ao meu, parece querer vasculhar-me a alma e sorrio-te. Afastam-se os teus lábios e esboças um curto ricto.
De negro, alto, aprumado, procuras não levantar ondas, mas sem saber já moveste céu e terra. Não o sabes, mas a delicadeza da tua boca, a afabilidade do teu olhar abalam-me a alma e começo a tremer. Quero falar, mas as palavras desertam-me. Saio na próxima...
 
De fones, ausente deste cais repleto de gente que se ignora, fecho os olhos para conseguir ver os sons que se materializam à minha frente e imagino-te minha, abraçando o teu corpo …
Um homem toca acordeão e retira-me da letargia, mas já não o ouço. Estás a chegar! Encima da hora, esbaforida, como sempre, distribuindo sorrisos joviais e cotoveladas. Levantas a cabeça, pareces procurar algo, desvio o olhar, ainda assim não percebas que te tenho observado e que vivo para o momento em que te dirijas a mim.
Chega o metro, entramos, estás agora a fitar-me sem pudor. Não consigo aguentar o teu olhar inquisidor. Acobardo-me, mas miro-te pelo canto do olho. De repente, pensativa, o sorriso apaga-se do teu rosto e pareces compreender a melancolia que trago presa a mim.
Procuro o meu reflexo no vidro, de cigarro na mão, levo-o à boca e assisto da primeira fila ao vácuo da minha existência. O que me amedronta assim tanto na felicidade? Ganho coragem e, finalmente, olho para ti, hoje estás mais bonita do que de costume. Atiro a ponta do cigarro para o chão e já não finjo que não existes. Procuro no teu rosto todos os indícios do que és, da razão pela qual te observo há semanas, talvez meses…
Agora, sei que existo para ti, sei que o teu olhar procura sofregamente o meu, nem sei porquê, mas também nem quero saber. Pressinto a felicidade. Sorrio levemente e sorris de volta. Sinto que te emocionas, coras, vejo que te deixei agitada e quero confessar-te a minha insânia, mas ao invés, aproximo-me de ti, estico os dedos até tocar na tua mão, respiro avidamente o teu perfume e murmuro-te ao ouvido: _Senta-te, não saímos na próxima.
 
 

Imagem daqui