24 Dezembro 2022      09:52

Está aqui

A salamandra

Olhando fixamente para o céu cinzento, o homem de cara fechada, sentado em cima de um tronco de azinho, sabia já que a chuva ia voltar.

Essa certeza deixava-o com sentimentos diferentes. Por um lado, inundava-o uma felicidade muito grande que lhe assegurava a água a alimentar as terras e as barragens e ribeiras cheias. Por outro lado, os perigos que a água trazia consigo assustava-o e pensava que, em demasia talvez causasse os estragos que vira, pela televisão, na grande cidade de Lisboa.

Só tinha estado uma vez em Lisboa. Não era para ele a vida nas grandes cidades, estava acostumado a ver o verde das serras e dos vales. Na única vez que fora a Lisboa, não fora por passeio ou por vontade própria. Tinha ido ao hospital grande, esses para onde nós levam quando as coisas são graves e precisamos ser vistos e passar lá uma boa temporada. Ninguém quer ir a Lisboa, para ir ao hospital. Corre, entre todos, que quem vai a Lisboa internado, será uma sorte de lá voltar com a saúde recuperada. Nem a Beja nós gostamos de ir ao hospital. O homem, tal como as mulheres e os outros seus pares, querem distância dos médicos, por muito que gostem dele. Para quem nunca precisou de médicos, ter de recorrer a eles, tornava-se um fardo e uma aventura inesperada cujo desfecho era inesperado.

Para este homem que se sentava no tronco de azinho, aquilo que lhe importava e que lhe ocupava o pensamento, além dos médicos, da grande cidade, das serras e dos vales, era mesmo a direção do vento e das nuvens. Saber se a chuva vinha na direção do seu monte, tão frágil como o seu corpo, fruto da idade, era a sua prioridade.

Se assim fosse e porque era altura das festas de Natal, era importante que enchesse os cantos da casa do fogo com madeiros de lenha de urze, azinho e medronheiro. A salamandra que deles se alimentava e trazia o calor ao pequeno espaço onde ele e a sua mulher viviam, precisava de lenha seca para se aquecer.

E aí com o Natal à porta, viriam os filhos e os netos, enchendo a casa, como acontecia todos os anos, pelo menos uma vez. Eram cada vez menos as vezes mas esta era a altura em que todos se juntavam, à volta da salamandra. Muito melhor que a lareira, a salamandra tinha o mesmo encanto visual, mostrando a força das chamas, sem que o fumo invadisse os espaços vazios da casa.

Desviando os olhos do céu e do monte, atraído pelo som do apito do homem das mercearias, levantou-se em direção à casa, carregando uns lenhos debaixo do traço, acompanhado pelo cão e por uma salamandra de feitio diferente que, secretamente o seguia a cada movimento.

Pouco depois, o céu abriu-se despejando a água guardada há mais de seis meses.