25 Fevereiro 2021      12:21

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Riqueza do Alqueva "não é igualitária e acelera saharização do Alentejo"

A Assembleia Municipal de Beja ordenou a elaboração de um relatório sobre o impacto das culturas intensivas no concelho, uma iniciativa inédita no poder autárquico regional e que foi proposta da CDU.

De acordo com o Público, a Assembleia Municipal de Beja apresentou, na passada reunião de segunda-feira à noite, o relatório “Reflexões sobre a Intensificação da Agricultura – Perspetivas e Impactos” sobre o impacto do Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva (EFMA) na região, e as conclusões não são animadoras.

O documento, elaborado por um grupo de trabalho formado em fevereiro de 2019 no seio deste órgão autárquico, refere que o atual modo produtivo na área regada está a ter uma fatura muito pesada, desde os impactos no solo ao pouco retorno para as populações locais, passando ainda pela destruição da paisagem.

O levantamento foi feito por técnicos e especialistas, instituições e entidades científicas, empresários, associações ambientais e de defesa do património e público em geral, que apresentaram a panorâmica da situação atual e uma perspetiva das tendências de desenvolvimento futuras do EFMA, no concelho de Beja, tendo em conta a preocupação sobre o “real retorno do investimento no EFMA, em matéria de desenvolvimento económico e social da zona de intervenção”.

O jornal Público, que teve acesso ao relatório, menciona que o documento constata que as “perspetivas de subdesenvolvimento tendem, naturalmente, a manter-se”, apesar do vultuoso investimento público aplicado no empreendimento. Além disso, o desenvolvimento “não chega a todos, não é equitativo”: uma alegação recorrente que se baseia na perceção de que os paradigmas de crescimento económico seguidos “ainda não contrariaram a tendência de decréscimo demográfico” e, deste modo, o território acaba por não dispor de condições para atrair novos residentes.

Por outro lado, reconhece-se a existência de um “défice significativo de conhecimento” sobre a realidade local, que contribui para a “prevalência de uma cultura territorial débil que se traduz em sinais claros de um estado de forte fragilidade”.

De facto, o modelo cultural baseado na intensificação das monoculturas está a dar lugar “ruturas importantes que já se refletiram em alterações na paisagem do território”, defende a análise feita pelo grupo de trabalho. A “rapidez extrema” do ritmo da mudança veio alterar “equilíbrios biofísicos e de padrões estéticos há muito constituídos e consolidados em tempos imemoriáveis”, afetando sobretudo a noção de realidade das gerações mais idosas, contribuindo ainda para “desconstruções” significativas que afetam os referenciais de memória coletiva, acrescenta o relatório.

O grupo de trabalho defende também que os “mecanismos de política adotados não se têm revelado adequados para inverter tendências estruturantes de fundo”, como por exemplo a sazonalidade do trabalho agrícola, que recai numa mão-de-obra na sua esmagadora maioria imigrante, que é acolhida em condições “pouco dignas e adequadas”. Ou seja, o modelo agrícola baseado nas culturas permanentes intensivas e superintensivas envolve operações “pouco exigentes”, em termos de ocupação de recursos humanos, mas acaba por “degradar as condições básicas de trabalho, proporcionando a precariedade laboral do espaço rural.”

Adicionalmente, a proteção dos solos foi também abordada pelos intervenientes, que referiram a “existência de processos erosivos intensos e transporte de sedimentos”. Foram também identificadas por alguns participantes as componentes do território que estão a ser “alvo de agressões significativas”, tendo sido referidos o meio hídrico, águas superficiais e subterrâneas, destacando-se o aquífero dos gabros de Beja por ser evidente a sua contaminação. Este aquífero é um dos mais importantes do país, estende-se pelos concelhos de Ferreira do Alentejo, Beja e Serpa e ocupa uma área 328 quilómetros quadrados.

A nova agricultura em Alqueva, subordinada aos regimes monoculturais, é propícia ao aparecimento de pragas e doenças que requerem “a aplicação de fitofármacos em demasia, sem que se conheçam os danos colaterais e as suas consequências” menciona ainda o documento.

Por seu turno, os empresários explicaram as razões que sustentam o que definem como o “desenvolvimento de uma agricultura competitiva, assente em processos técnicos e tecnológicos de intensificação produtiva, frisando que esta foi uma das principais justificações que determinou a realização do EFMA”.

Os representantes dos agricultores garantiram que “existe um sistema de controlo e certificação implementado”, baseado nos princípios da produção integrada e que são “cumpridos de acordo com os normativos”. No entanto, foram apresentadas por outros intervenientes inúmeras situações reveladoras de conflitualidades de usos e ocupações do espaço, em “desrespeito por enquadramentos formais ou legais, que se aplicam ao território concelhio.”

A falta de ordenamento nas intervenções agrícolas é “constatável em muitos casos” e estas são baseadas numa ocupação “indevida do solo rural, em desconformidade com o Plano Diretor Municipal de Beja”, sobretudo ao nível de ocupação do espaço “agrossilvopastoril e florestal” e na “excessiva proximidade” da instalação de culturas superintensivas com áreas residenciais.

Finalmente, quanto aos impactos no ambiente, o relatório indica que há “insuficiência de meios” para fazer cumprir a legislação e os regulamentos. Os ambientalistas presentes no grupo de trabalho adiantaram igualmente que os impactos provocados no ambiente pela desregulação na gestão do território no concelho de Beja “vieram numa altura muito desfavorável” para “agravar” os fenómenos das alterações climáticas, da degradação dos sistemas biofísicos, incluindo o montado ibérico, enquanto recurso florestal de referência, e assim potenciar o risco de “saharização do Alentejo”.

 

Fotografia de tempodeviajar.com