1 Abril 2018      11:55

Está aqui

A Revolução de Veludo (parte II)

Anos 70, Londres, sob o habitual céu cinzento, “refulge de brilhantes e maquilhagem”, uma nova ordem simbólica emergiu, fundeada na cena musical. Recolheu e abrigou miúdos, lascivos e os “náufragos das sarjetas”, acenando-lhes com o excesso de cor e oferecendo-lhes ídolos que se parecem com os seus reflexos nos espelhos. O GlamRock reina, e disso mesmo somos informados pela insuspeita BBC.

“Todos somos bissexuais!” – Palavras aladas vindas da boca de um jovem sorridente com uma mulher nos braços.

Não é bem assim: “É só uma frase que hoje em dia soa bem. Mas para ser gay é preciso fazer sexo à maneira gay, e isso, enfim, a maioria destes miúdos nunca conseguiria.”

E quem fala nestes termos? Curt, Curt Wild! Por esses dias o número dois do exército revolucionário. É o remoque: quando a simbologia começa a ruir, uma questão de tempo, a minoria volta ser minoria, nos becos escuros não cabem assim tantos, mesmo que se amontoem.O líder da sublevação, o “santo patrono”, é Brian Slade; um tipo de passado dúbio, entretanto transformado em semideus pela intervenção de um produtor musical ambicioso. Mas, mais uma vez, nem tudo é o que parece, a semidivindade é afinal um homem no limite, incapaz de continuar, através do reflexo no espelho (neste filme temos, como espectadores, continuamente de fazer um esforço semelhante ao das personagens para perceber em que lado do espelho nos encontramos) entrevemos o desespero que o consome, de divino, na aparência, nem sequer o romantismo potencial da causa perdida.

Então, num derradeiro esforço rumo à salvação, simula o seu assassinato em palco…

 

 

Nova Iorque: 1984. Dez anos depois. A um jornalista, Arthur Stuart (o britânico residente), é dada uma missão: descobrir o que aconteceu a Brian Slade após a descoberta da encenação, que, logo descobrimos, lhe destruiu a carreira.

Nova Iorque. O céu cinzento, tal como as ruas; como autómatos, milhares de pessoas deslocam-se mecanicamente para os seus empregos. De um imprevisto ecrã gigante, Tommy Stone, músico de dimensão global, anuncia a sua nova tour. Um grupo de pessoas, onde se inclui Arthur, observa sem entusiasmo; todo concentrado no ecrã. O espectáculo concentra-se e esgota-se na sua própria representação. A ideia revolucionária ter-se-á perdido algures no tempo, durante a década anterior. No final da apresentação, agravo último, Tommy Stone agradece ao Presidente Reynolds (aberração que remete para o infame Ronald Reagan, é claro).

Pela mão do desajustado Arthur, que em tempos viveu de perto os tempos gloriosos do Glam, é o tempo da recordação. Pode então iniciar-se a viagem da memória pelo Paraíso Perdido. Que obviamente nunca existiu senão no seu sonho.

Que, por fim, quinze minutos passados, comece o filme…

 

 

Do que se disse e do que ficou por dizer, como convém, o seguinte:

- A inscrição estética remete para figuras reconhecíveis – Brian Slade | David Bowie e Curt Wild | Iggy Pop.- Estrutura-se exactamente do mesmo modo que Citizen Kane.

Ou seja, para a obtenção de coordenadas, joga com duas expectativas cúmplices: que vamos necessariamente utilizar a nossa realidade e a nossa memória fílmica.

Integrados no sistema, podemos fazer coabitar ambas as expectativas. A realidade fixanos, é a  ancoragem da segurança, e a memória dos filmes vistos, melhor ainda se forem considerados emblemáticos, liberta-nos para o prazer do reconhecimento das fórmulas, abre-nos o ego. Sem querer, julgando o contrário, oferecemos o flanco.

Pior para nós (claro que não, melhor, muito melhor!), pois o objectivo de Haynes é a desorientação. Flanco exposto, perante a ‘voluptuosa parcialidade do autor’, pouco mais nos resta que cair na armadilha. O fascínio de um universo identificável, intelectualmente exposto, ainda que em modo embriagado, e afinal tão-somente uma versão gay da História da segunda metade do século XX.

Não uma versão panfletária – entenda-se, o que apenas serviria para acantonar forças, quaisquer que fossem. Antes utilitarista, expressa pela resistência da arte, autoreferencial no jogo de espelhos (veja-se os inúmeros piscares de olhos, metade em tom de gozo – vive la révolution! –, metade ao ritmo do desencanto), analítica, temerária, jamais tentado escapar, por exemplo, ao eventual ridículo do gesto excessivo, tão típico da indolente associação que o outro – o que não é – faz ao comportamento gay (que nem, digamos, em casa encontra eco enquanto gesto sério, apenas como simulação).

Mais do que nas divindades do Glam-Rock (modelos de iconolatria, aristocratas destinados à queda), é em Arthur, homossexual reprimido de e em todas as épocas que lhe foram dadas a viver, que a nova-realidade se estrutura realmente, onde se pode estruturar como real. Humano, que não demasiado humano, é alguém que ficou sempre de fora. Sonhou, eventualmente foi chamado a participar, mas sempre como elemento residual (veja-se a sequência em que, como acompanhante de uma banda, tem acesso às proximidades do palco, mas quando se expressa, digamos, excessivamente, dançando em movimentos loucos, logo é mandado parar – go easy, man! A expressão da loucura é apenas tolerada como normal nos divinos, nos eleitos). Até que certa noite, de excepção, ousa tocar um dos deuses, Curt Wild, que lhe devolve o toque; no sexo gay recebe a lição de vida por que tanto ansiava: “E ainda dizem que não é natural!” – Sussurra-lhe Curt, sob o olhar atento dos regressados extraterrestres benignos. Anos depois, o mesmo Curt oferece a Arthur o anel místico, que antes pertencera a Wilde, aJack Fairy, a Brian Slade (que, vimos a saber, se tornara “noutra pessoa”) e, claro, a Curt Wild (que nunca deixara de ser ele próprio, lição quem sabe se aprendida de Arthur, pois as portas ocultas tendem a estar próximas do nosso olhar; desembocam, é claro, em estranhos caminhos), os líderes entretanto caídos. Finalmente, um de nós, qualquer um, desde que mantido intacto o olhar interior, a aptidão de recolher ao infinitamente grande da individualidade (o que distingue o visionário do dia-a-dia, o sonhador, do homem comum), pode aceder à recompensa sem o tirocínio da arte, da genialidade ou do reconhecimento. Responsabilidade enorme, esta.

Arthur [um de nós, qualquer um] pode por fim aceder à Vida no sentido cósmico. Um nascimento. A representação das Origens perante os olhos lacrimejantes do espectador.

Toda a simplicidade do cosmos exposta numa canção vagamente reconhecível que toca num rádio, num qualquer bar dos subúrbios de uma grande cidade. Ou pequena, que o tamanho, tal como a fisionomia, o estado e a condição deixaram de importar.

Resumindo: entrámos na era da regularidade, não há anomalia para avaliar, pelo que se acabaram as desculpas.

 

Imagem de lescarnetsdeviviane.blogspot.pt