14 Abril 2018      11:04

Está aqui

Raspadinha

Era uma segunda-feira, um dia muito sisudo, tal como eu andava nessa semana. Ainda só essa manhã tinha começado e parecia já que durava há anos que iria correr mal até ao fim. Em casa, uma inundação que me pôs os cabelos em pé logo de manhã e os pés em água. Resolvido o problema, preparei o pequeno-almoço, ambicionando ter um momento sossegado, só para mim, dividido entre a torrada, os ovos e o sumo de laranja, seguido do café. Era um excelente pensamento. Era, mas não foi. E não se concretizou por duas razões muito simples. Por um lado, pus as torradas na torradeira e fui cortar as unhas. Aquilo demorou mais tempo do que estava à espera e, após cortar a unha do dedo grande, senti um cheiro acentuado a queimado. Tinham-se esturricado todas e, mesmo em seu socorro, não havia mais pão. O sumo, mantido há dias no frigorífico estava já azedo e lá se foi a vitamina C. Ficaria assim, sem nada mais, ficaria com fome o resto da manhã.

Saí de casa e dirigi-me ao carro, a fim de dirigir ou conduzir até ao trabalho. O dia estava feio, com vento e uma mistura de neve e chuva. O carro esperava por mim quente. Era o que me alegrava o pensamento, mas que rapidamente se despedaçou pois tinha um pneu furado. Lá fui eu então a caminho da estação, para apanhar o metro. O caminho era ainda longo mas tinha esperança que não fosse muito mau o percurso. Enganei-me. Chegado, gelado à estação, mais ainda tive de esperar, não fosse o tempo atrasar o comboio e ficarmos todos à espera dele durante uma boa meia hora. Já na estação, o comboio vinha atulhado de gente. Foi difícil empurrar-me lá para dentro mas lá me consegui enquadrar no meio de tanto corpo que mais parecia uma lata de sardinhas enlatadas. A vida não me corria de feição naquela segunda-feira. Pensei, se isto durar a semana toda, será uma punição. Não por um fim-de-semana de boémia, pois tinha passado o mesmo a ver séries e formato de binge watching, como se diz em inglês.

O comboio, por fim, atrasadíssimo, lá chegou à estação onde eu estava destinado a chegar. Na porta do trabalho, uma imensidão de assuntos para resolver e ainda não me tinha sentado à secretária para despachar impressos. Trabalho, falta dizer-vos, numa repartição de finanças e, em altura de entrega de IRS, as coisas complicam-se imensamente. O trabalho nem sempre me agradava, embora gostasse de números. Vivia com números e os números viviam comigo. Ultimamente, com todas as despesas, os números tinham, normalmente, muito poucos zeros de um lado e imensos do outro, até com sinais de menos.

O dia lá foi passando, até à hora do almoço, para perceber que me tinha esquecido da marmita em casa. Situação que me levou a ter de comprar uma sandes ali ao lado, com um sumo, não o mesmo, mas semelhante ao que devia ter bebido de manhã. Estava com o peso do mundo em cima dos meus ombros e com uma cara que, quem me olhasse de perto, fugia a sete pés. Estava com cara de poucos amigos. Não tinha muitos, verdade seja dita. Mas naquela segunda-feira não faria nenhum, definitivamente. No intervalo do almoço, fui dar uma volta, não pela rua, mas por um corredor interno que ali perto deixava as pessoas movimentarem-se sem grande alarido. E na rua, continuava o vento, a neve e o frio e a chuva. E eu, na minha cara continuava a pensar no azar.

Eis senão quando, à minha frente surge o quiosque de sempre e vi as raspadinhas. Sorriam para mim, às cores, tão belas e tão graciosas que vi ali a fortuna a saltar-me para os braços e não pensei muito. Cinco euros depois, comprei três e esperava, sinceramente, ter em cada uma delas, os milhões, ou os milhares, centenas talvez, ou já uma dezena me deixaria contente. Era o efeito psicológico de reverter o azar desse dia. Comprei e guardei, pensando em abrir as mesmas no final do dia de trabalho, em casa, no quentinho, onde certamente a sorte me bafejaria. Assim fiz.

Chegado a casa, sentei-me à mesa e comecei, com uma moeda de cinquenta cêntimos, a raspar. Ainda não era agora, talvez no próximo quadrado. Ou não, talvez na próxima raspadinha. E deste modo gastei as três e não me saiu nada! Zero, nicles, batatóides… foi um azar.

Despedaçado e ainda mais crente na minha sina, lá fui comer uma salada que era a única coisa que me restava. Amanhã havia de estar melhor tempo e poderia remendar o pneu do carro, amanhã lá estariam as raspadinhas e as outras coisas todas. Estas últimas só olharia para elas, mas o resto, há que pôr um olhar mais cândido e, no fim, isto até acabará por correr bem.

 

 

Imagem de caxemirabet.com