23 Agosto 2020      09:09

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Que mal pode fazer?

Por Angela Rijo

A Convenção Nacional Democrata nos Estados Unidos assinalou o pontapé de partida para as eleições presidenciais, que se irão realizar no dia 3 de Novembro. Em jogo, o futuro da democracia na “maior nação na Terra”.

Dia nove de novembro de 2016, o mundo acordava mais sombrio. Da minha parte, lembro-me, como se tivesse sido ontem, de acordar e ir de imediato ver as notícias no telemóvel. Fiquei atordoada, aquele resultado era impossível, como podia ser? Dias depois apagava em definitivo a conta no Facebook. Tinha percebido que o único motivo pelo qual não antecipei aquele resultado foi porque fiz da minha conta na rede social, uma câmara de eco. Ao longo do tempo, tinha vindo a “deixar de seguir” aqueles que mostravam ter perspetivas ou visões contrárias à minha, e assim, o meu feed de notícias tinha-se tornado uma bolha de reforços, onde apenas surgiam publicações de pessoas ou páginas com as quais tinha concordância. Quando criei uma nova conta fi-lo com o compromisso de não filtrar o conteúdo que o Facebook me mostra e deixar a coisa nas mãos do algoritmo. A desvantagem óbvia é que dou mais poder ao algoritmo sobre o conteúdo que me chega, mas essa desvantagem é atenuada pelo facto de que passo muito menos tempo na rede - ao sermos confrontados com menos conteúdo que nos gera interesse, recebemos menos estímulos positivos e consequentemente perdemos menos tempo a percorrer o feed. O motivo pelo qual esta história importa está encapsulado na conclusão.

Há quatro anos atrás, o que parecia impossível a muitos, não o era. A vitória de Donald Trump despertou-nos para os perigos da falta de escrutínio às gigantes tecnológicas e lembrou-nos de que as nossas liberdades estão em causa se as não protegermos. Nos dias que correm, em Portugal, alguns afirmam que ter alguém desprovido de um compasso moral ao leme do nosso país é aquilo que faz falta. Porém, o perigo maior está naqueles que, para os seus botões, se perguntam “Que mal pode fazer?”. Há quatro anos atrás, milhões de americanos aderiram a esse discurso, e outros tantos milhões foram complacentes com ele- foi o seu silêncio que elegeu o presidente que agora (não) têm.

Quase quatro anos depois da eleição de Donald Trump, os Estados Unidos são agora “a maior nação caída em desgraça na Terra”. Ainda antes de o mundo se bater com a pandemia e da absoluta incompetência demonstrada pelo presidente para lidar com a crise pandémica, que custou, à data em que escrevo, 175.458 vidas no país, as ações erráticas do presidente norte-americano já semeavam o caos nas relações diplomáticas, degradavam a confiança dos cidadãos na Democracia e abriam caminho para uma autocracia. Os danos que quatro anos da presidência de Trump causaram às condições de vida dos americanos, às conquistas do movimento dos Direitos Humanos, ao combate pelas alterações climáticas e à reputação internacional do país, demorarão a reverter, mas os danos que um segundo mandato pode provocar, não serão reversíveis. Os Estados Unidos, país cujo sistema político carrega legados de luta pela liberdade, igualdade e justiça para todos de presidentes como o visionário Thomas Jefferson, o líder para tempos de crise Harry S. Truman, ou Abraham Lincoln, que não precisa de adjetivação, estão em apuros.

É neste cenário que tem lugar a convenção democrata, cujo lema no primeiro dia foi “We, the people”. As figuras do partido, da ala mais progressista à ala mais conservadora, surgiram unidas como nunca antes visto e tiveram intervenções que carregam a urgência do momento. O discurso de Michelle Obama foi tremendo e irrepreensível, com sentido de urgência, empatia, paixão, verdade e clareza nas palavras e na intenção, mas não foi o único. Bernie Sanders, que abandonou a corrida em Maio, surgiu expressando claramente o seu apoio a Joe Biden e tentando mobilizar os seus apoiantes para a campanha do que foi o seu principal adversário nas primárias. Barack Obama relembrou os fundamentos básicos da presidência e a história da Constituição Americana, que o atual presidente se tem esforçado para apagar. A fasquia encontra-se tão baixa que é preciso relembrar que a função do presidente é servir o povo e não servir-se do povo. Kamala Harris provou uma vez mais ter sido a escolha acertada para vice-presidente; e Joe Biden é a escolha segura, mas não é apenas isso, o candidato democrata leva uma vida dedicada à causa pública e, tanto quanto o que sei sobre pessoas me permite afirmar, é um homem decente. Também rostos do partido republicano participaram na convenção, porque este já não é um combate entre a esquerda e a direita, é um combate pela democracia. Nas palavras de Kamala Harris “ninguém é livre, até que todos sejamos livres”. Não sabemos se será suficiente, mas os democratas sabem que não há espaço para erros, e o resto do mundo pode e deve tirar notas da trágica experiência norte-americana.

A Democracia não é um constructo que existe no vazio, a democracia somos todos nós, nas nossas ações. Portugal tem vindo a bater sistematicamente records na taxa de abstenção. O espaço para que vozes tóxicas ganhem tração existe, e ainda que cada uma das pessoas que opta por não exercer o direito ao voto não seja um potencial apoiante de uma dessas vozes, cada uma dessas pessoas acredita que a alternativa não é melhor ou não vale o esforço ou não acredita na democracia representativa. E por isso, que mal pode fazer? Muito, pode custar vidas, e bens essenciais à vida em democracia como o sistema de educação e o sistema de saúde (que de acordo com o nosso próprio pequeno aspirante a Donald, são para privatizar). Mas, nem só de atos eleitorais vive a democracia. A forma como utilizamos as redes sociais contribui para as nossas tomadas de decisão, para os julgamentos que fazemos do outro, da sua capacidade de liderar, do nosso lugar na sociedade, do lugar do outro na sociedade.

Termino como comecei. Em 2016 percebi que a minha página no Facebook era uma câmara de eco, já não lia vozes dissonantes da minha. Se fosse cidadã americana, teria possivelmente ter feito o mesmo que milhões de americanos, que, julgando impossível a eleição de Donald Trump, ficaram em casa. Talvez não tenha dado jeito ir votar naquele dia, talvez Hillary Clinton não tenha energizado suficientemente os indecisos os descrentes e os preguiçosos, talvez o perigo não fosse óbvio, talvez não apeteça, e depois? Que mal poderia fazer?

Imagem de capa de Jonathan Ernst

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Angela Rijo nasceu em Reguengos de Monsaraz e mudou-se para Lisboa aos 18 anos de idade. À data presente é estudante do mestrado em Psicologia Social e das Organizações, no Iscte, onde também colabora com o laboratório de comunicação Media Lab.