22 Maio 2021      00:10

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As pupilas da senhora Coruja

A senhora Coruja era professora numa escola do meio da floresta. Era uma senhora professora de um tempo em que as escolas e a educação era muito diferente daquilo que é hoje. Um tempo passado que já não existe e não voltará. A evolução da realidade criou barreiras que levam a que esse tempo não regresse nos mesmos moldes. Nem os manuais de ensino existem como existiram, na disposição dos conteúdos e nas mensagens transmitidas em palimpsesto.

Na aldeia, a professora era a figura mais respeitada. Ela e o médico, mas nesta aldeia o médico não existia. Só na vila mais próxima.

Nesta aldeia, a professora era a Senhora Coruja, uma profissional inteiramente dedicada ao seu trabalho, uma solitária que não podia casar sem autorização do Estado. Mas a Senhora Coruja também não queria. Dedicava-se inteiramente ao trabalho. Se fosse hoje em dia chamar-lhe-iam trabalhólica. Não era isso na altura, era só inteiramente dedicada às duas alunas. Só a elas porque as escolas estavam divididas entre meninos e meninas.

Ainda assim, apesar da homogeneidade de género, havia uma grande diversidade de espécies na turma. Tinha, entre elas, codornizes, galinhas, perdizes, galinholas, belharucas e muitas mais. Cada uma delas representava uma diferente personalidade e todas, formavam um grupo e a líder era a senhora Coruja. Sempre desperta, sempre alerta, pronta a perguntar a tabuada e dar uma boa reguada nas asas.

Na turma, a senhora Professora tinha já feito as avaliações. As mais interessadas, as perdizes. Distraídas e mais lentas na aprendizagem, as galinhas. Mas entre elas, as codornizes bem comportadas e uniformes, as galinholas alternativas e as barulhentas belharucas, todas enriqueciam a sala. A senhora Coruja vivia numa casinha ao lado da escola, nem precisava de se deslocar muito, também não gostava de andar. Tinha as penas carregadas de giz de tanto escrever na ardósia. As alunas, nas pontas da asa, pingas de tinta distintas e o assento nos rabos de pena, dos assentos reclinados.

Os anos da senhora Coruja corriam bem. As suas pupilas eram bem preparadas e, no exame da quarta, deixavam a penugem de vez e ganhavam asas para voar. Todas passavam com a nota máxima.

Os anos passaram, tantos anos passaram. A senhora professora, a senhora Coruja, foi envelhecendo e o seu método ficava cada vez mais cristalizado. Tão cristalizado que, nos nossos dias, pareceria obsoleto. Ela sabia o que fazia, dizia-se a si mesma.

No caminho de poucas patas até à escola, pensava nas coisas e nas aves todas que já tinham voado com as asas que lhes dera.

Como vos dizia, os anos passavam e passaram e um dia, a senhora professora não apareceu na escola. As alunas esperaram e olharam para a janela, e aguardaram o movimento da porta a abrir-se. E nada.

Uma das mais rebeldes, saltitou a avisar os seus pais e a responsável da escola que a senhora Coruja não aparecera. O alarme soou na aldeia. Onde estava a senhora professora que nunca faltara um dia? Teria algo passado? E assim saltitaram, patita ante patita, até à porta da senhora Coruja. Bateram incessantemente até à exaustão e nada.

Um pai mais forte arrombou a porta e entrou. A casa vazia e escura antecipava um desfecho que muito se assemelharia à lição de sapiência.

A senhora Coruja estava estendida na cama. Havia morrido durante o sono. Não se poderia nunca dizer que acordou morta, pois não acordaria dos sonhos que nos invadem a seguir à morte. Penso que, quando morremos, a nossa mente continua ininterruptamente a sonhar com o que vivemos, com o passado e é como se, na eternidade vivêssemos nesse limbo, mas o infinito também é o vazio e a Professora Coruja, a partir desse dia, estaria para sempre a ensinar a uma sal cheia de imagens, envolta na perfeição e na presença de todos as pupilas.

A senhora Coruja. Assim seria recordada.