1 Fevereiro 2021      09:26

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Presidenciais: Alentejo no olho do furacão!

Muita tinta tem corrido sobre o resultado eleitoral das Presidenciais verificado no Alentejo. De repente, o País "sábio, racional e letrado" olhou para a região com uma enorme desconfiança, surpreendido com a mudança radical do sentido de voto, habitualmente concentrado à esquerda.

Uma certa elite intelectual, desde a sobranceria da capital, apressou-se a emitir opiniões e a dar palpites, prevendo uma inversão na forma como o voto será expresso no futuro. Instalou-se um grande temor em relação às autárquicas, sobretudo porque os “iluminados” de Lisboa, muito céleres a fazer juízos de valor, nada conhecem, na realidade, sobre a nossa região. Muitos falam à distância, sem saber exatamente do que falam.

Nada, ou quase nada sabem sobre o Alentejo. Têm uma ideia romântica e idílica das nossas paisagens, do património e da gastronomia, que apreciam esporadicamente, quando nos visitam. Mas o Alentejo é muito mais que isso.

É uma região que tem uma identidade própria, com vivências e de tradições muito peculiares. Temos uma idiossincrasia muito genuína e um caráter próprio. Quem compreende isso, talvez parta em vantagem para o jogo político.

O problema  é que somos poucos, o que não nos tornava (ou torna) eleitoralmente apetecíveis. Pelo menos, para alguns- O nosso peso político, devido à escassa expressão demográfica, é muito pouco. 

Por isso, nunca nos deram a importância devida. Basta percorrer os nossos campos. Há aldeias que em poucas décadas serão varridas do mapa, por falta de gente. Talvez agora isso mude. O Chega encontrou aqui, talvez, um filão de insatisfação para se poder afirmar e ter alguma expressão.

Quem quer viver no Alentejo? Não há emprego, o real desenvolvimento, apesar de melhorias, tarda em chegar, os serviços de saúde são insuficientes, faltam investimentos.

Quem cá está sabe bem do que falo, porque sente na pele, em muitas circunstâncias da vida, a real proporção dos problemas. Mas nem por isso o povo alentejano desiste ou abdica da resiliente vontade em aqui permanecer, remando contra ventos e marés. Pode faltar-nos muita coisa, mas nunca perdemos a esperança!

Basta olharmos para alguns exemplos da História. Foram os Alentejanos, pobres, famintos e esfarrapados, que lutaram pela restauração da independência, em 1640. Fomos também resistentes e lutadores, aquando das Invasões Francesas, em que muita da nossa riqueza foi espoliada. Nunca renegámos a nossa portugalidade, mas estamos cada vez mais fartos de ser considerados como Portugueses de 2ª linha, por muitos daqueles que nada sabem sobre os nossos anseios e preocupações. 

Não queremos mais do que nos é devido, por direito próprio. Não venho aqui reivindicar tratamentos de excepção, nem apelar a boicotes ou revoluções. Mas também estou legitimado para fazer análises, com a vantagem de conhecer minimamente esta realidade.

A esperteza de Ventura identificou alguns problemas que existem e que não há como negar e aproveitou-se desse facto para, de uma forma demagógica e populista, falar ao coração dos insatisfeitos. Mas a culpa não é dele. É de quem criou a sua figura política. Há que pôr a mão na consciência e fazer esse reconhecimento.

As recentes votações são o reflexo de um descontentamento que se instalou, desde há muito… E não somente no Alentejo. Os politólogos, comentadores e opinadores da nossa praça talvez tenham dificuldade em entender isso, porque também eles fazem parte do sistema, que tem a Lisboa a sua sede e a sua esfera de influência. O que conhecem do Alentejo é muito residual, O que somos não pode ser conhecido por um fim-de-semana que se passa em Monsaraz ou em Fronteira, saboreando umas boas migas.

Declaro, desde já, que não alinho no discurso do Chega e não sou admirador da postura agressiva e arrogante de André Ventura. Não lhe reconheço capacidade política, nem sensatez no discurso. Penso que tem somente necessidade de protagonismo. Dos candidatos às Presidenciais, apenas um tinha o perfil e a preparação para o cargo. Todos sabemos isso. E o povo foi sábio nessa escolha, por uma larga maioria.

Na minha perspectiva, não é com discursos hostis, ou com renegação das origens, derivada dos votos expressos nas urnas, que se combatem as ideias radicais do Chega. É com novas atitudes, diálogo e proximidade com aqueles que votam. Estamos cansados de casos de corrupção, lentidão na justiça, indiferença e percepção de que continuam a ser meia dúzia de privilegiados que dominam isto tudo.

Curiosamente, houve por aí umas figuras públicas que, insatisfeitas com o ocorrido, em termos dos resultados eleitorais, decidiram excomungar o pouco do Alentejo que ainda tinham em si. Fazem cá uma falta como a areia no deserto.

O que escrevo nestas linhas é fruto do conhecimento que tenho da realidade onde vivo. Aquilo que aconteceu nas Presidenciais, com o elevado número de votos obtidos por Ventura, é o resultado de uma situação que foi claramente criada pelos partidos do sistema, com maior responsabilidade para os do chamado “arco da governação”. 

Salvo raras excepções, sempre fomos esquecidos e ostracizados. Muitas vezes sinto na pele que continuamos a ser tratados como os “pacóvios da província", que ainda dormem a sesta debaixo de um “chaparro”. Quantos de nós não sentiram já isso?

Os votos no Chega são votos de revolta, de décadas de esquecimento, de desertificação demográfica e de abandono. É fácil compreender isso, sem que se vá na onda dos discursos manipuladores. Para muitos alentejanos, a "fartura" é de tal ordem que o discernimento na hora do voto tem a tendência a ficar esquecido.

Na minha opinião, o fenómeno do Chega será efémero. Ventura não é mais do que um "tigre de papel". Porém, concorde-se ou não, em alguns pontos, toca na ferida. 

Não podemos esquecer que, nos últimos anos, temos também assistido a ataques cerrados ao mundo rural, por parte de algumas forças que também são radicais e totalitárias no discurso. Apostam tudo na proibição. E quem não se sente, não é filho de boa gente. 

Talvez o voto no Ventura seja também um sinal de revolta contra esse facto. O futuro político que se joga já nas próximas autárquicas depende das mudanças que também se verifiquem na forma como os outros partidos políticos olham para a nossa região.

Ponham-se em sentido!