30 Outubro 2020      17:18

Está aqui

Perder para ganhar

Por Ricardo Jorge Claudino

Perco-me;

às vezes nas palavras,

frequentemente no interesse.

.

Todos os dias

insisto em me perder no tempo.

E perco-me nas ruas

das maiores cidades do mundo;

não com tanta frequência

como todas as vezes que me perco

nas travessas das mais pequenas

aldeias alentejanas; também elas

perdidas no tempo, embora

não por vontade própria.

.

Também me perco

nas lembranças que se

perdem de mim.

Lembro todos os meus avós

que perdidos permanecem no silêncio.

Entro nas suas histórias longínquas,

agora enaltecidas pelos vivos.

.

Esta sensação não cabe dentro de mim;

é boa porque aprendo a recordar

e é má porque é preciso

perder para ganhar.

.

Sou actor do filme que eu próprio crio,

contraceno com crianças

que um dia serão meus pais

e com jovens adultos sem pele enrugada

− a mesma que mais tarde me habituara

a beijar.

.

Quem me dera gritar fora do guião:

− Avô, avó!

Sou eu, um dos vossos netos do futuro!

Abracem-me!

.

Mas contenho-me.

Tenho medo de mudar a história

e nunca mais poder vir a nascer.

.

Os meus antepassados,

para se tornarem antepassados,

deixaram-se perder.

Ou então apenas passam os dias

a viajar no presente.

Acho que se cansaram de ser gente;

nos últimos anos que cá estiveram

impaciência era o que todos tinham em comum.

.

São inteligentes, ainda aqui estão,

como tantos outros avós

que viajam pelo mundo e

brilham na forma mais humana:

de se parecerem com Deus.

(um poema do livro “A Cor Do Tempo” de Ricardo Jorge Claudino)

Imagem de capa de catracalivre.com

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Ricardo Jorge Claudino nasceu em Faro em 1985. Actualmente reside em Lisboa. Mas é Alentejo que respira, por inigualável paz, e pelos seus antepassados que são do concelho de Reguengos de Monsaraz. Licenciado em Engenharia Informática e mestre em Informação e Sistemas Empresariais pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa. Exerce desde 2001 a profissão de programador informático.Também exerce desde que é gente o pensamento de poeta.