23 Novembro 2019      12:16

Está aqui

Osga

Vivia com uma osga. Nas paredes do meu quarto e da minha vida, tinha uma osga comigo. Réptil que me acompanhava para todo o lado e que, agarrada com as suas ventosas, desafiava os meus medos mais irracionais. A osga olhava-me dia e noite. Por volta do meio dia agarrava um mosquito com a língua que punha de fora. As melgas e os mosquitos desesperavam com medo daquilo que poderia sair dali. A osga era infalível, cada vez que a sua língua se esticava. Muitas vezes mais longa do que o seu próprio corpo. Seria por ciúme? Sempre me intrigou e numa obtive uma resposta. A osga não falava comigo, mas os seus olhinhos de osga, esbugalhados, afirmavam-me essa realidade. Osguinha, cada dia crescia mais. As suas ventosas ferozes, a sua pele enrugada, o seu silêncio. Osga. Um dia passei a chamar-lhe Ó Ó, porque era nessa altura, quando eu dormia, que ela se libertava e andava à vontade pelo quarto da casa.

Muitas vezes pensava que um dia acordaria com ela agarrada à minha cara, com as ventosas cravadas na minha pele, sangrando já pelo esforço feito. Ó Ó não teria coragem de me maltratar, depois de a ter mantido junto de mim, sem a espalmar com uma vassoura. Osga pensaria o mesmo, pensava eu.

Muitas vezes falava com ela, dizia-lhe coisas bonitas e dignas da nossa proximidade. Ele esbugalhava os olhos, fazia um balão na zona da garganta e, às vezes, lançava a língua de fora e palmilhava um mosquito. Pelo menos esses não me sugariam o sangue nem me picariam deixando uma baba enorme e sem jeito.

Porém, e aqui começa a segunda parte da minha história, mudei de casa. Teve de ser, arranjei emprego em Oslo e tive de me mudar para lá. Não sei se em Oslo há mosquitos, mas se houvesse, a Ó Ó não poderia ir comigo. Uma coisa era viver em Portugal, na zona de Óbidos, outra seria viver numa terriola fria, gelada. A osga, mesmo sendo de sangue frio, não aguentaria.

A despedida custou. Nesse dia nem quis olhar para aquele canto onde a minha companheira se agarrava. Empacotaram-me as últimas caixas e parti. Por contentor, levaram um mês a chegar. Eu fui de avião. Os primeiros dias foram muito difíceis. Conseguir habituar-me ao frio que se fazia sentir, às caras novas das pessoas, ao peixe todos os dias, não foi uma tarefa nada fácil. Duvidei das minhas capacidades de integração. Na segunda semana, as coisas melhoraram. Oslo já me parecia uma cidade fantástica, mas faltava-me algo, lembrava-me da Osga todos os dias. Tinha-me afeiçoado por ela e sabia que ela certamente me amava. Porventura já teria arranjado alguém novo e eu estava sozinho. A dor era enorme. O tempo passava ainda assim. Na terceira semana já fazia ó ó sem a companhia da Ó Ó. O raio da osga parecia que tinha cravado as ventosas no meu pensamento.

Um mês. As caixas chegaram. Comecei a desempacotar tudo. Eram muitas caixas. Cansado adormeci. Acabaria no dia seguinte. Quando acordei, no canto, Ó Ó estava lá, olhando-me, como sempre! Esfreguei os olhos para ver se não estava a sonhar. Não estava mesmo, Osga metera-se numa das caixas e seguira-me até aqui. Não conseguia viver sem mim. Ali, naquele momento, com aquela prova de amor, apaixonei-me por uma osga.