21 Maio 2017      11:08

Está aqui

ODES PARTE III

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

The Pale Fountains: Thank You

Sabe a Verão pelo ritmo doce e porque nos obriga a olhar para trás. Como todos sabemos, Verão só é Verão perante a memória dos que já passaram... É a única estação sem Presente ou Futuro. Enfim, exagero, sob condições especiais um certo Futuro pode ser entrevisto, mas de muito pouco vale. Nem como sonho. Nem como desejo...

 

Laurie Anderson: O Superman

Alguém que pergunta de onde vem o encantamento nas performances musicais de Laurie Anderson.

Arrisco a seguinte resposta:

Por culpa do cinema habituámo-nos a que nos troquem as voltas com o tempo, não com o espaço. Sentamo-nos na cadeira e olhamos para cima; depois rimos, choramos, desesperamos, franzimos o sobrolho e amamos no nosso presente (enquanto espectadores), crendo com genuíno amor estar a observar algo que pode ser passado, presente ou futuro. Laurie Anderson sabe disso e tenta colocar-nos num ponto sem tempo preciso, mas também sem espaço palpável a que nos possamos ancorar. E sem quaisquer coordenadas referenciais, não podendo por essa razão cair – pois não se cai para lado nenhum –, resta-nos então levitar...

 

Marc Bolan, David Bowie, Lou Reed e Iggy Pop

Ouve um tempo em que os músicos declaravam abertamente que queriam ser famosos. Sobretudo os bons, os muito bons e os muito-muito bons. Se eram génios, então que fossem proclamados imortais. Nada mais natural. A questão era como. Era uma forma inata de estar – que outros, noutro tempo, haveriam de transformar em forma postiça de ser, convencidos que não seriam apanhados.

Marc Bolan, após uma luta árdua, e não isenta de fracassos, foi o primeiro grande génio (GG) do movimento fictício chamado pré-Glam-Rock a ascender ao estrelato. No movimento anterior, acabado de inventar, diga-se, devem ser incluídos todos os que entre 1965 e 1971 ambicionavam a fama, eram génios criativos e ainda não tinham descoberto a fórmula mágica, precisamente o Glam-Rock…

Glam-Rock e Marc Bolan, o improvável destino de um autodidacta forçado a mudar de rumo [Nota Irresistível: jovem de espírito resiliente, Marc Bolan lutou heroicamente contra o uso de amplificadores e outros componentes eléctricos, mantendo-se tanto tempo quanto lhe foi possível próximo da pureza ancestral da música que mais amava: uma música de florestas, magos e respectivos feitiços]. Substituir então GG por GGAFMR.

Glam-Rock? Para que nada fique por dizer, foi uma tomada de posição delirante e/ou um movimento híbrido aparecido no início dos anos setenta do século passado com o objectivo de vestir a pop – como alguém referiu, ou então deixou escrito – de “nostalgia e extravagância”. Maquilhagem em rostos masculinos. Penachos em ombros masculinos.

Sapatos de plataforma em pés masculinos. Roupa apertada de licra brilhante em corpos masculinos. Ou seja, cor, excesso, provocação e máscaras que escondiam máscaras (i.e., a intimidade finalmente mostrada) de acordo com os princípios da manliness. Mas não só, pois pelo caminho também houve alguma da mais notável música pop-rock até então produzida [Nota Irresistível 2: As bandas pop-rock clássicas (voz, baixo, guitarra e bateria) eram por essa época como que crianças a desbravar caminho para a idade adulta – tempo que, sabemo-lo hoje, nunca haveria de chegar]. Durou oficialmente três anos, e teve direito a concerto de despedida.

Segundo a lenda tudo começou com um acto involuntário. Antes de uma aparição televisiva, Marc Bolan, insatisfeito com a imagem, terá colocado eyeliner para compor a figura e lá foi tocar para o palco; tema: o mítico Hot Love. Foi uma escalada pela dimensão da loucura, um homem maquilhado era tudo o que a Londres do início dos setenta parecia precisar.

O outro homem que mais beneficiou dessa casualidade foi David Bowie, génio feroz de todas as eras, que apoiado no batom, chifons, tafetás, e tornado sublime por ritmos ultraterrestres, criou a mais reconhecível personagem da época, Ziggy Stardust.

Bowie, por sua vez, já como líder do gang, perfilhou todos os que quiseram entrar na onda, mesmo os mais insuspeitos, e, imagine-se, entrou Lou Reed. Um prodígio – proferiram os fãs, depois de alguma desconfiança. Muito mais do que mais uns lábios pintados. O álbum, pois a isso se resumiu, então e para sempre: Transformer, quiçá o título mais estético de sempre de um disco pop.

Outro perfilhado de Bowie foi Iggy Pop. Com uma nuance: este possuía uma energia explosiva que facilmente se transformava num fogo incontrolável. Nascera para ser dono e senhor do seu destino até às últimas consequências. Gimme Danger, tema retirado do álbum Raw Power, quarenta e quatro anos passados, é ainda a mais extraordinária canção sobre a crueza do acto sexual que se conhece.

Quanto a mim, se alguma vez me senti ambientado na plena sexualidade, foi com estas músicas. É no que dá viver contaminado pelos efeitos de tão singulares desarmonias.

 

Lou Reed: The Raven

Porque demonstra que a ópera-rock pode finalmente fazer sentido.

Porque nos faz recordar o prazer ambíguo provocado pelos medos infantis - que demasiado rápido, e sem disso nos apercebermos, deixamos de sentir. No que me diz respeito, ainda sinto uma picada de melancolia (e é estranho que uma sensação tão delicada surja por intermédio de picadas) quando tento reavivar o temor que me invadia ao chegar da madrugada.

E também porque exige que se ouça como um filme sem imagem, com a vantagem de ser muito mais interessante do que a tremenda seca estilística do genial César Monteiro.

 

Imagem de billboard.com