20 Agosto 2022      10:31

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O sorriso independente

Vivia nos lábios de uma pessoa que não sabia sorrir. Nunca tinha usado os lábios para sorrir na sua vida nem sabia o que era isso. Os seus lábios viviam só de amargura e de tristeza. Er usados apenas para se queixar da vida, de coisas que o atormentavam e faziam sentir cada vez mais velho. Ao passar de cada dia, as rugas que o envelheciam, rodeavam ferozmente os lábios e tornavam-nos parte de um conjunto triste e amargo. A pessoa onde os lábios habitavam era uma pessoa que dificilmente conseguiria sorrir. Não valia a pena tentar de outra forma, não havia forma de conseguir arrancar um sorriso. Insatisfeitos por ver em outros rostos esse sorriso, os lábios que nele viviam, talvez inspirados pela leitura desse brilhante conto de Nikolai Gogol, o Nariz, deixaram planear uma fuga para o exterior do rosto do homem amargurado. Não seria um momento fácil, talvez doloroso… mas os lábios estavam determinados a seguir em frente com o seu plano.

Elaborado durante meses, os lábios agiriam durante a noite, depois de passar por si uma quantidade enorme de calmante que forçasse o homem a dormir. Embora passasse pelos lábios, estes tinham já planeado como não ser afetados pelo plano de adormecer. Logo que o proprietário abandonasse os seus sentidos, seria o momento certo para abandonar o rosto envelhecido e procurar um novo rosto onde pudesse habitar e tornar o sonho de sorrir em realidade.

Quando o homem se encontrava já na fase REM do sono, os lábios decidiram que era o momento certo! Manter-se-iam em silêncio para não denunciar o seu esquema. Não levariam consigo a amargura nem as palavras do passado. Não queriam ser descobertos e obrigados a regressar mas queriam sorrir e de forma independente. Seriam um sorriso independente, embora a sua sobrevivência talvez tivesse de estar ligada a qualquer corpo. Poderiam os lábios sobreviver e ter um sorriso independente só por si? Onde conseguiriam encontrar um hospedeiro? Determinados em cumprir o seu objetivo e de que não seria um problema, saíram a correr de casa, pela rua fora, seguindo instintos primários e, durante todo esse tempo, estavam a sorrir. A sensação de independência era, sem dúvida, um passo além do que tinham vivido até aí.

Durante horas, sorriram e sorriram, certos do encontro de um corpo receptor. Porém, todos os corpos tinham lábios. Procuraram em hospitais, em todos os lugares conhecidos e desconhecidos, e não foram bem sucedidos.

Cansados, com um sorriso já desvanecido do cansaço, resignaram-se ao previsível. Conseguiriam só viver no corpo que sempre conheceram. Era preciso regressar. Era necessário voltar a dar voz ao homem atormentado. Regressaram nessa noite ao lugar de onde tinham saído e encontraram o homem no mesmo lugar, ainda dormindo, tal fora a força dos calmantes administrados.

Num ímpeto, saltaram para o rosto e lá se alojaram de novo. A grande diferença foi a de que, no dia seguinte, o homem acordou com um sorriso na cara, o mesmo que o acompanharia até ao fim dos seus dias.