Este governo foi pródigo em deixar-nos novos conceitos em democracia. Mas talvez o mais pernicioso de todos seja este com que nos brinda no final: a ideia de que os sindicatos são bons se, nas mãos da UGT ou da CGTP, puderem ser instrumentalizados para atacar um governo hostil, mas passam a ser maus se, independentes, decidirem atacar-nos no momento em que mais nos dói. Foi um modelo de argumentação tentado com os enfermeiros, mas agora verdadeiramente executado com os motoristas de matérias perigosas.
Longe vão os tempos em que o então líder do Bloco de Esquerda vociferava na Assembleia: “Não toque num cabelo dos grevistas!”, dirigindo-se ao então primeiro-ministro, socialista! Quem os viu e quem os vê. E quem diria que havíamos todos de viver para ver o Partido Comunista Português fazer dos trabalhadores em luta o inimigo, acusando-os de “radicalismo”. Sim, o PCP. Mas desengane-se quem possa pensar que se trata de um sinal dos tempos, de uma abertura à relativização do direito à greve. Longe disso. Mal estes dois partidos regressem à sua zona de conforto, a oposição, voltarão a afinar as gargantas estridentes, por agora amaciadas.
Não sou fervoroso adepto do direito inalienável à greve, e acredito que, como todos os direitos, deve ser analisado, ponderado e relativizado, face a outros direitos igualmente fundamentais que possam estar em conflito. Mas acredito que muito mais perigoso é este direito que acabámos de dar ao governo, o direito de se apropriar da negociação do contrato coletivo de trabalho entre sindicatos independentes e uma associação empresarial privada, para, de seguida, tendo assumido voluntariamente o papel de principal vítima dos sindicatos, acossado em vésperas de eleições, ter de muscular o Estado para esmagar a greve, com serviços mínimos de cem porcento, ou seja, deixando zero porcento à greve. Ou o direito que acabámos de dar ao primeiro-ministro de vir a público ameaçar com pena de prisão quem não cumprisse a requisição civil.
Este é o primeiro-ministro que já demonstrou estar disposto a usar todas as armas contra quem possa beliscar a sua luta pelo poder. Sejam enfermeiros, motoristas ou outros quaisquer, sofrerão na pele se ousarem desafiá-lo. E as armas de guerrilha serão também todas usadas, principalmente a preferida do PS, e que tão bem resulta em país de comadres: o assassinato de caráter. Seja o carro conduzido pelo líder dos motoristas, o seu passado empresarial, ou o seu futuro político, tudo fará correr rios de tinta nas redes sociais, para gáudio socialista. É o velho “quem se mete com o PS leva!”, exacerbado pela proximidade das eleições.
Imagem de capa do Observador.