8 Dezembro 2017      22:21

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O RAIAR DA AURORA

Descansado, entre as folhas e as gotas de orvalho, em cima de uma árvore estranha no meio de outras tantas, o pisco que estava em cima daquele galho meio seco, dormia ainda. De peito vermelho alaranjado, quase como se o sangue viesse das bicadas que talvez tivesse dado nas laranjas das redondezas, mas talvez não fosse assim. A camisa branca estava perfeita. O casaco, esverdeado, protegia-o dos primeiros frios de Inverno que chegara há poucas semanas.

O pequeno pássaro, de olhos ainda fechados, sonhava. Sentia-se o movimento e a velocidade dos seus sonhos nas pálpebras que estavam ainda fechadas. De olhos pequeninos como aquele frágil corpo, estava aconchegado debaixo das folhas daquela árvore que não pertencia ali e mesmo assim se parecia enquadrar.

A árvore, não endógena, tinha sido para ali trazida por um homem que viajava em cima de um cavalo, ou de burro. Não se sabe bem ao certo. Ninguém o conhecia, nem ninguém mais ouviria falar dele. Passou, ficou o rasto, durante alguns dias, do animal que o levava às costas e, com as chuvas, dissipou-se e desapareceu. Do homem, que só por ali passou aquela vez, imagino eu que viria dos lados do Algarve e se dirigia para alguma feira para os lados de Almodôvar. Assim fora ou assim podia ter sido.

Em cima do animal, movimentando o corpo como quem é parte daquele que o segura, tal sagitário, abana e pende levemente para um lado e para o outro, como se cantasse o cante alentejano no meio daquele percurso. Era uma serra ingreme onde não muitos passavam muitas vezes naqueles dias. Mais tarde surgiria ali uma estrada e acabaria de vez com qualquer vestígio da passagem dele e de tantos outros. A estrada seria, como é hoje, de terra batida. Pó no verão e lama no inverno.

O homem, de face encardida do tempo, barba por fazer de alguns dias e covas no rosto, onde devia estar a carne que a alimentação fraca não enchia. Tinha fome. Comia um fruto para matar essa fome e o fruto não era, não tinha sido e só seria, anos mais tarde, visto por aquelas bandas. Era uma manga. Claro que nada tinha o nome a ver com as mangas das camisas que usamos. Era um fruto estranho e continuaria a ser. O homem não achava. Tinha chegado às suas mãos, vindo das mãos de alguém, que o teria trazido de longe. Não sabia. Sabia só que era doce e alaranjado por dentro e isso servia-lhe. Acabou de comer tal fruto ali perto do sítio onde o pisco estava, agora, anos depois, e atirou-o para longe. Caiu num lugar abrigado, que apanhava sol e nascera ali a mangueira que daria os frutos, anos depois.

As coisas que são passageiras tornam-se, por vezes, sementes que se transformam em permanentes, pelo menos enquanto duram. E essas, hão de dar frutos, como deu a mangueira onde, naquele dia, se abrigava o pisco de peito alaranjado. Agora sabemos já que não lhe vinha da laranja mas sim da manga. O homem passou, não voltaria ali a passar. Deixou a sua semente.

O pisco, a ele voltamos, ali se abrigava com segundas intenções. Todos os dias, em tempo de fruta ali se abrigava e dormia e sonhava, pensando não no doce do fruto mas na doce menina Aurora que ali vinha colher as mangas, o fruto estranho, ali nascido sem ninguém saber como. Aurora morava perto e a sua família era dona do terreno onde tal fruto estranho nascera. O pisco apaixonara-se por ela, pelos seus olhos cor de semente que o olhavam a sorrir e não o ameaçavam como todos os outros olhares. Aurora era a mais doce fruta no chilrear do pisco e, só por isso, passava ali os dias. Só por isso se forçava a abrigar debaixo das folhas, sem olhar para as árvores comuns. Naqueles dias em que a fruta não desaparecia da árvore, Aurora viria ao raiar do dia e os seus olhinhos pequeninos a poderiam ver. As mangas adoçavam o bico e davam cor ao peito. A árvore sentia-se única e deslumbrante, fora tão forte que resistira e prosperara num ambiente que não era o seu. Tudo graças ao homem sem nome que passar e deixara o caroço que dera a semente. Teria o homem amado tanto como o pisco amava Aurora. Talvez sim, talvez não. Nunca o saberemos. Aquilo que ficou foi a sua passagem que se tornou permanente.