18 Março 2017      10:21

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O MOLEIRO

"PARALELO 39N"

Estive, no passado sábado, no aniversário de uma Escola (Antero de Figueiredo-Farmingville) que, durante a festa, professoras e alunos nos apresentaram profissões extintas ou em vias de extinção em Portugal.  Tive, aí, o enorme gosto de recordar antigas profissões que, algumas conheci, outras nem tanto, pela distância em que eram exercidas ou pela não existência desde que me conheço como pessoa.

Uma dessas profissões trouxe-me à memória os moinhos de vento e os moinhos de água do lugar onde abri os olhos pela primeira vez. Na terra onde nasci, a mesma onde sempre volto, todos os anos, um moinho de vento que outrora fora e hoje já não é, vigia toda a serra, acompanhado pelo moinho do Monte das Figueiras, um bocado acima do Canafixal, ao lado da Casinha, e pelo moinho da Boavista… e pelo moinho do Monte das Soeiras e outros haverá de igual silêncio e vigilância, andando à volta, nas suas velas, braços aos olhos de D. Quixote. Estes, que eu saiba, não lutavam contra ninguém. Trabalhavam, continuadamente, ao som do vento, ouvindo os seus segredos e as novidades que traziam de outras terras.

Nesse moinho, o do Malhão que olha bem lá do alto as casas e as vidas das pessoas. Esse moinho que tudo sabia, trabalhou anos e anos, rodaram os seus braços anos e anos, dando força às mós que rodavam, esmagando a semente levada por bestas até ao cimo do monte. Era trigo. Era semente. Transformava-se em farinha. O vento sussurrava e tudo nos braços de um homem que organizava tudo e fazia as mós rodar. Esse homem era o moleiro.

Neste moinho, um dos muitos moleiros que por lá passaram, é o Ti Manuel Francisco, meu vizinho desde sempre, homem trabalhador, dedicado ao moinho que organizava. Não sabia os segredos do vento, mas conhecia as suas palavras. Conhecia as canções do vento. Sabia a sua linguagem. Foi o Ti Manuel Francisco que ensinou o meu pai a ler e a escrever, neste moinho, no tempo em que as velas sopravam e contavam histórias. O meu pai cresceu e o Ti Manuel Francisco envelheceu e ambos envelheceram. O próprio moinho parou, foi vendido e revendido e hoje é uma casa de habitação, comprada por gente estranha à terra, que eventualmente passarão a fazer parte dos poucos que por lá habitam ainda.

Quando nasci, já o Ti Manuel Francisco não era moleiro no moinho de vento. Passara a conhecer os segredos da água. A partilhar as letras das músicas que a água canta, os acordes do açude e as sinfonias da água a bater nas mós e, de novo, a transformar as sementes em farinha que fará o pão e alimentará as bocas daqueles que contarão as histórias que a água viu, no ribeiro, entre a nascente e o moinho. Não as contam ao vento, só de passagem quando este último desce e acaricia a superfície dos pegos e as correntes que correm sem saber para onde, nem lhe interessa. O que importa é a viagem e não o destino. São as pessoas que conhecemos e as paisagens que vemos que tornam o percurso rico. Os moinhos, a farinha, as bestas que carregavam a semente, ora para o cimo do monte no moinho de vento redondo, nas largas velas que já inspiraram Cervantes, ora para o fundo do vale onde o moinho de água fora construído em pedra, metido no meio do ribeiro, onde as mos roíam as sementes e as despedaçavam até que delas restasse a farinha branca. Não me esqueço do cheiro da farinha, da madeira rodeando as mós, das paredes empoeiradas com os restos da farinha que as mós faziam saltar, na forma da água que as rodava. No meio, os braços e a força do Ti Manuel Francisco que, num e no outro, acompanhavam o trabalho que alimentava os homens de pão.

No moinho, a solidão de um trabalho que ouvia ao mesmo tempo os segredos do vento e as canções da água, deturpados pela força das mós a rodar que não queriam que se ouvissem as músicas ou se conhecesses os segredos dos ventos de outras terras. Na força dos braços, o alimento. Numa palavra, o moleiro.

 

Imagem de centralpenacova.blogspot.pt