21 Abril 2020      09:00

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O Milagre na Cela 7: um carrossel de emoções

Por Guilherme Catarino

Era essencialmente com um sentimento de curiosidade que, no passado domingo, pretendia ver “O Milagre na Cela 7”. Questionava-me sobre o porquê de tanto alarido à volta do filme, de tanta revolta, indignação e tristeza da parte daqueles que o contemplaram. Não seria apenas mais uma “lamechice” como tantos outros? Afinal de contas “lágrimas não são argumentos” - Machado de Assis assim o afirmou - pelo que, o que o diferenciaria de tantos outros? Estava lançado o desafio.

O filme narra a história da pequena Ova, órfão de mãe, que vive com a avó Fatma e com o seu pai, Mehmet (Memo), numa pequena e humilde aldeia turca. Portador de uma deficiência mental, Memo leva uma vida feliz e inocente como pastor, ocupando-se de alegrar a sua filha e de a levar todos os dias à escola. Pertencente a uma sociedade obtusa, Memo é tomado como “diferente” pelos residentes, algo que não leva, em alguma circunstância, a sua pequena Ova a deixar de se manter junto de si.

Condenado erradamente à morte pelo homicídio da filha de um tenente-general, Memo terá de conviver com os prisioneiros insensíveis e desalmados com quem partilha cela, que, paulatinamente, são levados pelo carinho e a bondade que o caracterizam e se apercebem do erro que foi cometido.

Através dos testemunhos dos prisioneiros - da mudança que neles se verifica - levados pela infantilidade, ternura e afeição de Memo na relação que toma com a sua filha, assim como na maneira leviana e alegre como este aborda a situação fatal onde se encontra, a peça produzida por Mehmet Ada Öztekin expõe a nu a força que uma relação de amor puro pode tomar. Mesmo a viver com a frágil, mas douta, avó, o foco de Ova está sempre no pai e na forma mais rápida de poder voltar a brincar e conviver com ele.

Por seu lado, o Milagre na Cela 7 evidencia igualmente bem o lado tenebroso do ser humano. Provada a inocência de Memo, o militar turco, na personagem de Yarbay Aydin, cego e sedento de vingança, recusa-se a aceitar a verdadeira e insólita morte da filha e vai até aos limites para punir o (inexistente) culpado. Unicamente abalado pela incredulidade da morte da sua jovem Seda ou pelo simples instinto bárbaro de retaliação, o general Aydin personifica de maneira crítica, mas sóbria, os limites da atuação humana, indiferente às limitações ou evidências que se apresentem à sua frente na busca do fruto que deseja. E isto é algo único e de louvar na obra.

O realizador turco convida todos os espetadores a embarcar num carrossel de emoções, de onde se retiram valores de espetros totalmente opostos: por um lado a puerilidade de Memo na maneira como aborda a vida que o atraiçoa, e do outro a irrazoabilidade que toma o militar turco que, ofuscado pela luz da vingança, se recusa a olhar a verdade. Uma obra a ver.

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Guilherme Catarino, nascido em Lisboa em 2000, estudou no Colégio de São Tomás e encontra-se no 2o ano da licenciatura na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa